Criminologias cyber

Criminologias cyber

Definição

Estudos sobre a autonomia e a arquitetura do ciberespaço; os atuantes cibernéticos, suas causas e motivações; os crimes, desvios e ameaças desenvolvidos a partir do, e condicionados pelo, dispositivo da tecnologia da informação; e as formas de expressão do controle e da punição do comportamento desviante no contexto do ciberespaço.

Aspectos distintivos

No discurso mais contemporâneo, cyber tornou-se um morfema lexical antepositivo a substantivos, utilizado para formar vocábulos compostos referentes à cultura da tecnologia da informação, computadores, realidade virtual e, mais especificamente, referente à internet, ou para denotar conceitos futurísticos. A maioria dos vocábulos compostos já dicionarizados teve o seu estabelecimento a partir da década de 1990 e as composições já somam mais de meia centena, numa representação tão onipresente que houve quem se referisse a isso como ciber-hifenização. É essa facilidade de composição de cyber- com outros vocábulos (ciberisso, ciberaquilo) e a sua direta conotação com a cultura de tecnologia de informação, computadores, realidade virtual e com a internet, que permite propor o título de criminologias cyber (aqui utilizado em sua função adjetiva, aproveitando a aptidão declinativa da língua inglesa) ao estudo científico da natureza, dos atores, das formas de expressão, do controle e da punição do comportamento delinquente no contexto telemático.

A referência corriqueira a cybercrimes e a consequente e expansionista pretensão atributiva do predicado ­cyber aos crimes que envolvem, de algum modo, a arquitetura da tecnologia da informação carecem, contudo, de esclarecimento sobre o que é propriamente cyber neles. O que caracteriza o crime como propriamente cyber, exigindo novas e alternativas criminologias para si? Nas recentes três décadas, período em que houve uma revolução nas tecnologias de informação, as seguintes questões têm sido apresentadas. Haveria uma implícita presunção, promovida como reação a um inédito fenômeno, de que há algo novo, distinto da compreensão tradicional de crime? Essa presunção não esconderia que há muito “vinho velho em novas garrafas”? Ou há, de fato, algo como cybercrime, que exige articulações criminológica, dogmática e político-criminal próprias? As respostas a essas perguntas podem ser classificadas num matiz que varia entre a ideia (tradicionalista) de que os cybercrimes são fundamentalmente crimes tradicionais executados por meio da tecnologia da informação e a ideia (adaptacionista) de que os cybercrimes marcam uma descontinuidade com os crimes tradicionais. Nesse intervalo, é ainda possível que autores adotem ambas as perspectivas.

Num plano geral, quanto à emergência de uma articulação criminológica própria para o fenômeno cyber, alguns autores concluem que não há necessidade – ao menos, no presente momento – de uma nova criminologia que compreenda o fenômeno dos cybercrimes, sendo suficientes para entendê-los, analisá-los e explicá-los os conceitos e teorias criminológicos já estabelecidos. Na análise mais específica do fenômeno, o que pode ser extraído em comum dos argumentos desses autores é que a tecnologia é reduzida a um mero meio, através do qual indivíduos utilizam máquinas para atacar outras máquinas e outras pessoas. Em outras palavras, a criminalidade virtual é basicamente a mesma do crime terrestre com o qual estamos acostumados, diferenciando-se aquela somente em termos do meio. Um ponto positivo dessas perspectivas tradicionalistas é que elas evidenciam uma sobrevalorização do meio cibernético. Afinal, gângsteres, terroristas, pedófilos e pornógrafos estão na internet, assim como estão em outros lugares; porém, apesar de eles também utilizarem aeronaves, rodovias e telefones, para obviamente expandirem seus campos de ação, ninguém pensou em identificar essas outras redes tecnológicas como ferramentas para criminosos. O mesmo se diga sobre quem utiliza um telefone para ameaças (que responde pelo crime comum de ameaça) ou para fazer apostas (que vai enfrentar uma clássica contravenção), ou sobre aquele que subtrai um celular ou um automóvel (que vai responder por furto de objeto). Daí se infere que as categorias criminológicas convencionais seriam válidas ao ciberespaço e que parte do saber criminológico atual poderia ser transposta à realidade virtual ou aplicada às tecnologias de informação. No entanto, enquanto cautelosas, essas perspectivas também são descuidadas por sua generalização, que torna todos os cybercrimes versões de crimes terrestres, ignorando a capacidade das tecnologias cyber de criarem crimes que não podem existir fora do ciberespaço.

Sem argumentar por uma criminologia inteiramente nova, alguns autores reclamam uma adaptação da criminologia para justificar a análise de fenômenos emergentes que podem ou não atrair um rótulo criminal. Eles defendem uma revisão de conceitos criminológicos e enquadramentos teóricos, e o desenvolvimento de um vocabulário criminológico correspondente e inovador, com fundamento na ideia de que o universo criminológico se tornou incapaz de explicar os novos desvios que provocaram demandas para a criação de novos (cyber)crimes. Central aos seus argumentos, há uma noção explícita ou implícita de descontinuidade com o velho e de emergência do novo. Nesse sentido, se o que se pretende é o desenvolvimento de uma nova teoria, com suas próprias formas de investigação, apta a compreender esse novo fenômeno com uma linguagem autêntica e contemporânea, e responder ao desafio de mudança e irrompimento, é preciso identificar pressupostos que permitam uma nova proposição de definição e de critérios criminológicos.

Análise

O desenvolvimento de um ambiente social novo e distinto (o ciberespaço), com suas próprias estruturas ontológica e epistemológica, formas de interação, funções e possibilidades, oportunizou a emergência de fenomenologias criminais inéditas:

a) O ciberespaço desafia limites espaciais físicos, tornando a geografia irrelevante diante de uma experiência de equidistância. Ainda que sejam identificáveis constantes referências espaciais do mundo físico – navegação, sítios, portais, salas de bate-papo, envio e recebimentos de mensagens –, as expressões revelam-se como metáforas convenientes que nos auxiliam a contextualizar um ambiente que é inerentemente distinto do mundo físico. São meros recursos linguísticos. (Mas, enquanto o ciberespaço despreza limitações geográficas, o mesmo não pode ser dito com relação às comunicações feitas por meio da internet – e aqui se evidencia como ciberespaço e internet são distintos. Nos recentes anos, tem se verificado que diversos serviços fazem uso de ferramentas que permitem a identificação geográfica dos atuantes de forma bastante eficaz – porém, imperfeita –, possibilitando ou não que se tenha, por exemplo, acesso a determinados conteúdos.)

b) O tempo também foi deformado no ciberespaço. Ao menos, se tomarmos como pressuposto a compreensão mais comum do tempo como um fluxo quantificável de eventos, que implica numa dinâmica que varia entre a expectativa (futuro), o acontecimento (presente) e a perda (passado). A experiência da comunicação à velocidade da luz proporciona a sensação de um imediatismo que embaraça o entendimento naturalmente acostumado a uma sequência derivada de ações físicas. Além disso, a compressão temporal oferece um outro fenômeno: a aniquilação do passado (perda) pela permanente rememoração – esse sim, agora, insistente e pesado. Se o esquecimento sempre foi a consequência natural do tempo, desafiada pelos registros históricos das narrativas da escrita e das representações – ao que denominamos memória ou lembrança –, as técnicas de armazenamento e recuperação de informações digitais possibilitam hoje que o passado esteja presente, que o acontecido esteja ao alcance imediato, que a rememoração seja absoluta (sobre todos) e permanente (disponível) – a tal ponto que o esquecimento tenha sido recentemente elevado a um direito de se ter informações pessoais deletadas de registros e bancos de dados, já reclamado em tribunais pelo mundo.

c) Aparentemente livre do controle de governos ou de corporações, o usuário da internet experimenta maior autonomia. No âmbito das manifestações criminosas, o empoderamento individual proporcionado pela internet gera um maior controle da execução criminal pelo indivíduo atuante. Esse empoderamento decorre da capacidade da tecnologia em ser multiplicadora de força, possibilitando que indivíduos com recursos mínimos gerem potencialmente enormes efeitos negativos.

d) As interações no ciberespaço oportunizam aos indivíduos a capacidade de se reinventarem, adotando novas personæ virtuais potencialmente muito distantes de suas identidades do mundo real. Mas, além dessa personificação voluntária, é necessário destacar que a presença virtual se constitui a partir de uma multiplicidade de informações compostas pelos perfis nas redes sociais, pelos registros em fóruns, pelas contas de compras online e pela comunicação fática das atualizações de status, dos gestos sem informações (curtidas, cutucadas, matches) e de outras formas de interação que priorizam a conexão e o reconhecimento sobre o conteúdo e o diálogo. Esse conjunto de informações constitui uma presença digital, uma persona pública virtual e desincorporada, que se apresenta em vários pontos na arquitetura do ciberespaço, numa vasta e permanente reserva online de informações pessoais (de fotografias marcadas, de preferências de consumo e de hábitos de navegação).

e) Novas formas de associações e intercâmbios, caracterizadas pela instantaneidade e pela aparente equidistância das interações entre usuários, tornam todos vulneráveis a uma variedade de “predadores” que podem alcançá-los instantaneamente, sem as restrições das barreiras normais da distância física. Além disso, esses fatores têm sido um incentivo aos comportamentos desviantes e à autocolocação em risco (efeitos desinibidores on-line).

Esse rol (não exaustivo) de novidades evidencia um fenômeno emergente de comportamentos estruturados e condicionados pela tecnologia da informação que demandam o desenvolvimento de novas abordagens teóricas, nas quais a técnica seja compreendida como sujeito do fenômeno criminal.

Referências bibliográficas

BROWN, Sheila. "Virtual Criminology", In MCLAUGHLIN, Eugene; MUNCIE, John. The SAGE dictionary of criminology. 3. ed. London: SAGE, 2013. p. 486-488.
CAPELLER, Wanda. "Not Such a Neat Net: Some Comments on Virtual Criminality", Social & Legal Studies, v. 10, n. 2, 2001, p. 229-242.
FRANÇA, Leandro Ayres. Criminologias cyber. 2017. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
WALL, David S. Cybercrime: the transformation of crime in the information age. Cambridge: Polity, 2007.
YAR, Majid. Cybercrime and society. 2. ed. London: SAGE, 2013.

Referências artísticas

Matrix (Lilly e Lana Wachowski, 1999)
Filme
O filme descreve um futuro distópico no qual a maioria dos humanos interage em uma realidade simulada chamada Matrix, criada por máquinas sencientes para subjugar a população humana, enquanto seus corpos são usados ​​como fonte de energia.

Mr. Robot (Sam Esmail, 2015-2019)
Série
Thriller que narra a história do recrutamento de Elliot Alderson, jovem que trabalha como engenheiro de segurança informática e hacker vigilante, por um grupo de hacktivistas (fsociety) que pretende atacar o maior conglomerado do mundo.

Leandro Ayres França
LattesORCID


FRANÇA, Leandro Ayres. Criminologias cyber. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 2.ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2021. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/criminologias-cyber/72. ISBN 978-65-87298-10-8.