Anomia

Anomia

Definição

Fenômeno intertemporal que ocorre sempre que exigências ou transformações, sociais ou pessoais, ocasionam desequilíbrio e descoordenação entre os objetivos das sociedades, o acesso aos meios de realização disponíveis e as normas reguladoras que se tornam ineficazes.

Aspectos distintivos

Para a escrita deste verbete, a opção recaiu sobre três elaborações distintas feitas sobre anomia por: Émile Durkheim, Robert King Merton e Mireille Delmas-Marty, atendendo às respectivas áreas de estudo.

Durkheim trabalhou pela primeira vez suas ideias de anomia em sua obra Da divisão do trabalho social, de 1893, explicando que é um estado que ocorre sempre que a sociedade não consegue produzir solidariedade por conta da não regulamentação na relação entre as instituições e entre as instituições e seus cidadãos. Ele aponta três cenários possíveis que caracterizam a anomia: 1) quando as relações são raras, não se repetem o suficiente para se autodeterminarem ou se autorregularem – a cada novo encontro, novas normas são constituídas e, em geral, são vagas e genéricas; 2) quando há contiguidade na relação, porém ela é recente ou pouco duradoura, os organismos envolvidos não têm tempo suficiente para construírem normas determinantes e reguladoras; 3) quando há contiguidade e já dura tempo considerável, a anomia se manifesta quando a elasticidade do corpo social chega ao seu limite, não conseguindo mais produzir as transformações necessárias à sua regulamentação.

No livro O suicídio, de 1897, ele volta ao tema relacionando economia e suicídio demonstrando que as taxas de autocídios aumentam tanto em tempos de pujança econômica quanto em tempos de crise. Nesses momentos, as regras sociais se alteram de forma brusca e causam períodos – sejam breves ou longos – de readequação das normas e objetivos, caracterizando assim o estado de anomia. O autor apresenta, neste contexto, alguns exemplos de anomia: 1) anomia crônica, que se relaciona ao comércio e a indústria; 2) anomia doméstica, decorrente da viuvez que altera as regras familiares; 3) anomia conjugal, causada pela ocorrência do divórcio que impõe nova realidade ao casal; 4) anomia sexual, como consequência da inconstância desta atividade, pensada para as pessoas solteiras.

Robert Merton em seu artigo Social Structure and Anomie (ainda sem tradução oficialmente publicada para o português), publicado na American Sociological Review, em 1938, teorizou sobre a ocorrência da anomia sempre que houver descoordenação entre os meios e metas propostos nas estruturas sociais. Neste trabalho ele identificou algumas das fontes socioculturais dos comportamentos considerados desviantes, além de apontar para a expressiva pressão exercida por estas estruturas sociais sobre os indivíduos desta sociedade. Esta, ao descrever quais as metas devem ser atingidas para que se alcance pretenso sucesso social, também coloca à disposição os meios para o atingimento destas metas. No entanto, a mesma estrutura que disponibiliza os meios, limita sua utilização com base na capacidade de cada pessoa acessar estes meios. Dizendo de outro modo, certos segmentos sociais conseguem utilizar todas as ferramentas legítimas para obterem sucesso (riqueza, poder, ...), enquanto, aos setores desprivilegiados, não é possível o acesso a estes meios. Quando isto acontece, o esforço legítimo e inefetivo cede, gradualmente, espaço ao esforço ilegítimo e efetivo, transparecendo a incompatibilidade entre as metas exigidas e os meios, condicionalmente, disponibilizados. Esta inconsistência ocasiona o surgimento de personalidades sociais patológicas, condutas antissociais e o desejo de revolução; e a instabilidade na coordenação entre metas e meios avança exigindo a obtenção, a qualquer preço, de prestígio fundado na riqueza ou no poder. Esta pressão, inexoravelmente leva à ruptura da estrutura regulatória, restando apenas os limites impostos pelo cálculo que leva em consideração a vantagem a ser obtida e o temor da punição que poderá ser imposta. Rompendo-se a estrutura social, advém a descoordenação entre os meios regulatórios (metas e meios); esta falta de coordenação, quando extremada, faz desaparecer qualquer previsibilidade de comportamentos e a possibilidade de regulação destes o que, inevitavelmente causa um hiato de caos cultural e social e, assim, a anomia se revela.

Em política criminal, segundo Mireille Delmas-Marty, os modelos são determinados pela intensidade/reserva da resposta fornecida – ou pelo Estado, ou pela sociedade ou ainda por ambos – para as condutas, fatos, ou situações negativas ou indesejáveis, arbitrária e aleatoriamente selecionadas como crimes. Os modelos mais encontrados hodiernamente são o Estado Autoritário e o Estado Sociedade Liberal, em que há distinção entre infração e desvio. Os modelos extremos são o Estado Totalitário e a Sociedade Libertária, que não distinguem infração de desvio e reservam a resposta exclusivamente ao Estado e à sociedade, respectivamente. Dentre os modelos, Delmas-Marty aponta um no qual não se observa a ausência de leis, mas, mais profundamente, a ausência de valores que suscitam a criação de normas de conduta e convivência. Ao inexistirem estes valores fundamentadores das leis, não há o que se falar de infração/desvio, não há conduta, fato, ou situação negativa ou indesejável, arbitrária e aleatoriamente selecionada como crimes. Este é um cenário de anomia. Sinteticamente, a anomia para Delmas-Marty não é a ausência de leis, mas a ausência de valores que justifiquem a existência das leis.

Análise

A definição apresentada acima busca sintetizar, se é que isso pode ser possível, as elaborações teóricas de Durkheim, Merton e Delmas-Marty, que de certa forma se comunicam e se completam, mesmo que elaboradas em momentos distintos e distantes. É imperioso afirmar que tais elaborações se mantêm adequadas aos estudos hodiernos, revelando o caráter cíclico do comportamento de nossas sociedades.

Para a criminologia, não importa a definição básica proposta pelos dicionários da língua portuguesa para anomia – "que não possui norma, desprovido de leis, sem regras" – até mesmo porque não é só disso que se trata. É importante entender como as transformações sociais e pessoais, as exigências de obtenção de sucesso e a pressão por desempenho colaboram para a ocorrência de desajustes entre determinados fatores.

A elaboração de Durkheim em Da divisão do trabalho social, quando aponta os cenários possíveis de ocorrência da anomia, podem colaborar para o entendimento das movimentações sociais desses tempos, em que a evolução tecnológica desafia a capacidade das sociedades se autorregularem tão rapidamente quanto surgem novos desafios, assim como das instituições regrar a relação para com outras instituições e para com seus cidadãos. Em O suicídio, Durkheim acrescentou as transformações pessoais que podem levar ao estado de anomia. Esta teorização gerou grande impacto e influência na observação dos comportamentos nas sociedades pós-modernas. Um bom exemplo atual é o surgimento de novos modelos de famílias, que atravessou um hiato até que começassem a surgir normas reguladoras desta nova realidade.

Merton contribuiu decisivamente para a criminologia, quando apontou que o descompasso entre a pressão pela realização de metas (riqueza, poder, ...) – exigida de todos sem distinção – e os meios disponíveis para atingi-las – ao dispor de poucos – pode levar à ruptura da estrutura social e à incapacidade de se prever comportamentos e, portanto, à impossibilidade de regulá-los, dando origem ao fenômeno anomia. Atualmente, este descompasso é ainda maior. As desigualdades aumentaram na mesma razão que se evoluiu tecnologicamente. As metas a serem alcançadas se multiplicaram e os meios de realização foram afastados de grande parte da sociedade. A exigência de desempenho faz com que cada vez mais sejam percebidos comportamentos ilegítimos, mas eficazes em detrimento de esforços legítimos, porém ineficazes.

Se é verdade que se vive uma era de mitigação de valores em prol de mais resultados, maior desempenho, é crível dizer que estes valores "negociados" não podem, ou não poderiam fundamentar leis de regulação social. As normas existentes se baseiam em valores de outrora, porém, pouco a pouco, se percebe o abandono destes e a obsolescência destas normas. De acordo com Delmas-Marty, aprofundando-se esse cenário, chegaríamos ao modelo de política criminal denominado de anomia.

Referências bibliográficas

DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal (Les grands systèmes de politique criminelle). Tradução: Denise Radanovic Vieira. Barueri/SP: Manole, 2004. ISBN 85-204-1876-7.
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social (De la divisiona du travail social). Tradução: Eduardo Brandão e Carlos Eduardo Silveira Matos. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019. ISBN 978-85-469-0248-4.
DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia (Le suicide). Tradução: Mônica Stahel. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019. ISBN 978-85-469-0249-1.
MERTON, Robert K. Social Structure and Anomie. American Sociological Review. v. 3. n. 5. Out. 1938, pp. 672 – 682. Disponível em: https://doi.org/10.2307/2084686. Acesso em: 28 dez. 2021.

Referências artísticas

O lado bom da vida (David O. Russell, 2012).
Filme
As personagens principais, Pat Solitano Jr. e Tiffany, passam por momentos de anomia que, de acordo com a elaboração de Durkheim, podem ser identificadas como anomia conjugal - Pat por conta de seu divórcio recente - e anomia doméstica - Tiffany em razão de sua viuvez. Ambos estão tentando se adequar às novas realidades e adotam comportamentos indesejáveis pela sociedade.

Trapaça (David O. Russell, 2014)
Filme
O comportamento de inovação apresentado por algumas das personagens, que recorrem aos meios ilegítimos e eficazes – conforme elaboração de Merton – para reagir à pressão social e alcançar o sucesso, que no caso se representa pela busca da riqueza (através das "trapaças") e do poder (através do envolvimento com a política).

Carlos A F de Abreu
Lattes | ORCID


ABREU, Carlos A F de. Anomia. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 3.ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2022. Disponível em : https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/anomia/100. ISBN 978-65-87298-14-6.