Caça às bruxas

Caça às bruxas

Definição

Perseguição sistemática a parcelas populacionais, especialmente às mulheres, realizada com o propósito de punir os indivíduos (e salvar suas almas) pelos "crimes" de culto ao Diabo e de bruxaria.

Aspectos distintivos

Durante os períodos que compreendem a Baixa Idade Média e início da Idade Moderna, as autoridades eclesiásticas e civis europeias utilizaram de sua influência para punir aqueles que supostamente possuíam poderes sobrenaturais. As principais acusações estavam ligadas a denúncias de realização de orgias sexuais com demônios, sacrifício de seres humanos, especialmente de crianças, e a prática de canibalismo. Sob o pretexto de livrar a sociedade do mal, as "bruxas" eram julgadas e condenadas à morte.

Com a progressiva modificação das religiões ocidentais para um sistema de crenças monoteísta dualista, intensificou-se a associação de feitiçarias com heresias. Historicamente, o primeiro registro da relação entre as práticas mágicas e atos heréticos deu-se a partir de um julgamento ordenado por Roberto II, o Piedoso, que culminou em execução diante do Palácio Episcopal de Orleans, em 1022. O evento assimilou as acusações de bruxaria a outros julgamentos, até o ponto em que elas se tornaram muito mais numerosas se comparadas com as acusações de outras heresias.

As práticas de bruxaria foram predominantemente associadas às mulheres pelas autoridades eclesiásticas, sob o pretexto de que o Diabo (figura masculina) dominava as figuras femininas com mais facilidade, considerando as suas supostas fragilidades, superstições, promiscuidade e estupidez. Nesse período, os conceitos filosóficos da busca pela verdade divina e da união da fé cristã foram fundamentais para definir quem seria alvo da perseguição orquestrada pelas instituições de poder. As perseguições afligiram, majoritariamente, as mulheres pertencentes aos estamentos mais baixos da sociedade.

Além disso, as formas de transmissão da cultura popular – narrativas orais e literárias – contribuíram para que a população aceitasse sem grande resistência os procedimentos utilizados nas perseguições sistemáticas. Tomando como exemplo da incorporação das novas crenças à cultura popular, destaca-se a peça de teatro elizabetana A Trágica História do Dr. Fausto (1594), de Christopher Marlowe, baseado em lenda alemã que versa sobre as práticas de ocultismo e as consequências derivadas de sua realização.

Não há consenso entre os pesquisadores sobre um total vítimas da caça às bruxas; para que se obtenha uma ideia das atrocidades realizadas, Jeffrey Russel, historiador medievalista, acredita que a perseguição tenha custado a vida de aproximadamente 60 mil pessoas, sendo que de tal número, cerca de 80% dos casos denunciados representam mulheres.

Análise

A caça às bruxas foi um fenômeno tão intenso que, para além de ter sido implantado na Europa, também passou a ser utilizado como estratégica política de colonização em territórios conquistados. Campanhas para subjugar e explorar economicamente as civilizações indígenas e africanas empregaram as mesmas estratégias e táticas repressivas propagadas pela classe europeia dominante. Encontram-se relatos de julgamentos de "bruxas" nos continentes americano, asiático e africano, sendo o último relato da execução de mulheres em fogueiras por cometimento de bruxaria datado em 1994, na região sul-africana de Transvaal.

No período, as principais produções literárias e acadêmicas que abrangiam a temática de bruxaria eram compostas por bulas papais e manuais escritos pelos inquisidores, v.g., Manual dos Inquisidores (1376), de Nicolau Eymerich, e Martelo das Feiticeiras (1486), de Heinrich Kraemer e James Sprenger. Eram raros os estudos que questionavam as penas aplicadas às mulheres condenadas. Destaca-se que a obra Cautio Criminalis (1628), de Friedrich Spee, questionou a improbidade dos procedimentos que levavam às condenações, sem abordar, todavia, a existência das "feiticeiras".

Destaca-se também que muitos dos estudos e pesquisas realizadas pós caça às bruxas retratavam as vítimas do período como: tolas, miseráveis, pervertidas e pessoas que sofriam de alucinações. Para os pesquisadores, a punição aplicada às "bruxas" teria adquirido um papel de "terapia social". Posicionamento que por muito tempo foi amplamente defendido.

Com o advento do movimento feminista, o fenômeno da caça às bruxas passa, atualmente, a ser analisado de uma forma mais ampla, especialmente pela associação das feministas com a figura das folclóricas bruxas. É possível encontrar grupos feministas que adotaram a figura da "bruxa" como um símbolo de sua revolta em busca da libertação, como manifestado pelos ideais defendidos por Robin Morgan, importante representante do feminismo radical.

Apesar de significativo aumento em pesquisas sobre o fenômeno da caça às bruxas na Europa nas últimas décadas, a temática permanece pouco estudada em outras partes do mundo, especialmente, naquelas em onde os colonizadores europeus utilizaram dos preceitos da caça às bruxas para subjugar populações nativas.

A eliminação dos costumes, a implementação no imaginário popular da ideia de periculosidade dos indivíduos considerados desviantes e a realização de diversas campanhas para fins de isolamento social e desumanização dos alvos, foram os principais alicerces para que a caça às bruxas fosse possível e justificável perante à sociedade.

Embora tenham se passado anos desde o "encerramento" da caça às bruxas, as táticas de neutralização utilizadas à época ainda são atuais. Hodiernamente, a pesarosa expressão se refere a perseguições sistemáticas de outros alvos.

Referências bibliográficas

EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
KRAEMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Trad. Paulo Fróes, 28. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
RUSSEL, Jeffrey; ALEXANDER, Brooks. A história da bruxaria. Trad. Álvaro Cabral e William Lagos. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2019.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O nascimento da criminologia crítica: Spee e a Cautio Criminalis. São Paulo: Tirant Brasil, 2020.

Referências artísticas

A Trágica História do Doutor Fausto (Christopher Marlowe, 1594)
Peça de teatro
Essa obra é uma peça de teatro elizabetana, escrita entre 1589 e 1592, que conta a história do Dr. Fausto – praticante de ciências ocultas – em forma de prosa e verso. O personagem principal vende sua alma ao diabo para adquirir poder e conhecimento por um período de 24 anos. Durante esse período Dr. Fausto tenta se livrar do castigo que o espera, porém, excluído de qualquer dadiva divina, seu destino trágico é inevitável. Demonstrando a dicotomia entre o bem e o mal existente na época.

Museo de La Tortura (Santillana del Mar, s.d.)
Museu
Esse museu conta com diversos instrumentos de tortura utilizados entre o século XV e XIX. Cada instrumento é exibido com ilustrações históricas além de um resumo de como ele era usado e quais os crimes que tiveram tal punição aplicada. Esse museu conta com três seções e uma delas foi dedicada a apresentar dispositivos criados para torturar especificamente as mulheres.

A Noiva do Diabo (Saara Cantell, 2016)
Filme
Esse filme retrata o início da caça às bruxas na Ilha de Äland em 1666 e está baseado nos julgamentos realizados à época. A personagem principal é uma jovem de 16 anos, chamada Anna, que se apaixona por um homem casado e encontra a possibilidade de ficar com ele denunciando a esposa por prática de bruxaria. No decorrer da história 16 mulheres são condenadas por supostamente estarem ligada ao Diabo e 7 são executadas sob o argumento de limpar a ilha de superstições.

Karine Darós Silveira
Lattes | ORCID


SILVEIRA, Karine Darós. Caça às bruxas. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); ABREU, Carlos A F de; RIBAS, Eduarda Rodrigues (orgs.). Dicionário Criminológico. 4. ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2023. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/caca-as-bruxas/131. ISBN 978-65-87298-15-3.