Crimes contra humanidade

Crimes contra humanidade

Definição

Categoria jurídica criada por tratados internacionais para definir condutas graves perpetradas contra os direitos humanos, como parte de um ataque sistemático ou generalizado contra a população civil e a partir de uma política de Estado ou organizacional.

Aspectos distintivos

A categoria jurídica dos crimes contra humanidade se desenvolve após o fim da 2ª Guerra Mundial, como resposta às atrocidades cometidas na Europa e no Extremo Oriente. Os crimes contra a humanidade foram embrionariamente definidos por tratados internacionais (a exemplo dos Estatutos do Tribunal Internacional de Nuremberg de 1945 e do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente de 1946).

Os crimes contra a humanidade também estiveram sujeitos à jurisdição dos Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia (funcionou de 1993 a 2017) e para Ruanda (de 1994 a 2015). A jurisprudência desses tribunais auxiliou na determinação dos contornos jurídicos desses crimes, influenciando nas definições trazidas pelo Estatuto de Roma (de 1998), que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), o qual tem competência para julgar crimes contra humanidade que ocorram no território de seus Estados partes ou praticados por seus nacionais, além daqueles que eventualmente venham a ser objeto de resolução do Conselho de Segurança da ONU em que se determine que a intervenção do Tribunal seja necessária.

De acordo com o Estatuto de Roma, cabe, em primeiro lugar, à jurisdição doméstica a apuração da responsabilidade penal dos perpetradores dos crimes contra a humanidade. Apenas no caso de não haver disposição política ou diante da impossibilidade por falta de recursos humanos e materiais para levar a cabo investigação e julgamento desses crimes é que o TPI pode exercer sua jurisdição (é o princípio da complementariedade, conforme artigos 1º e 17 do Estatuto).

Desde o surgimento do sistema internacional de proteção dos direitos humanos no pós-guerra, a comunidade internacional tem se dedicado a instituir mecanismos de tratamento jurídico dos crimes contra a humanidade. Por colocarem em perigo a segurança internacional, os crimes contra a humanidade são tipificados por tratados e sujeitos à jurisdição de tribunais penais internacionais. Trata-se de interesse da comunidade internacional na prevenção e repressão a esses crimes, de modo que o Direito Internacional impõe aos Estados partes dos tratados o dever de adoção de políticas criminais voltadas a garantir que crimes dessa natureza não ocorram e de política de persecução que impeça que esses crimes passem ao largo do sistema de justiça. Impõe-se, para o cumprimento desse fim, o afastamento de imunidades e o regime de imprescritibilidade para esses crimes (artigos 27 e 29 do Estatuto de Roma).

A criação da categoria dos crimes contra humanidade deu ensejo à adoção pelo Direito Internacional do paradigma da responsabilidade individual. Com a emergência desse paradigma, havendo desrespeito aos direitos humanos por parte de agentes estatais ou por membros de uma organização não estatal, deve-se distinguir entre as chamadas graves violações aos direitos humanos e os crimes contra a humanidade, visto que para cada uma dessas categorias serão aplicados modelos diferentes de responsabilidade jurídica.

Por força do Direito Internacional dos Direitos Humanos, todos os Estados partes dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos devem se submeter à obrigação de promover e efetivar os direitos humanos em âmbito doméstico e internacional. A violação grave aos direitos humanos ou a omissão em cumprir com a obrigação de salvaguardar os direitos humanos enseja a responsabilidade internacional do Estado, podendo vir a ser sancionado em Cortes Internacionais (como a Corte Interamericana de Direitos Humanos ou Tribunal Europeu de Direitos Humanos), ou em comitês da ONU (como o Comitê contra a Tortura ou o Alto Comissariado para os Direitos Humanos), ou ainda perante o Conselho de Segurança da ONU, por exemplo. No caso dos crimes contra a humanidade, a responsabilidade será individual, ou seja, poderão ser responsabilizados penalmente os indivíduos que cometeram ou ordenaram os atos de violência, bem como os que prestaram auxílio aos autores do crime, não se admitindo a responsabilização de entes coletivos.

A principal definição jurídica dos crimes contra humanidade vigente atualmente para o Direito Internacional se encontra no artigo 7º do Estatuto de Roma. Segundo o Estatuto, crimes contra humanidade são violações de direitos humanos que devem fazer parte de um ataque sistemático ou generalizado contra a população civil, a partir do cometimento das seguintes condutas: homicídio; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada; prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; tortura; agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero; desaparecimento forçado de pessoas; apartheid; ou outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

“População civil”, para efeitos do artigo 7º do Estatuto de Roma, significa grupo de pessoas que não tomam parte no conflito armado, ou seja, não se trata de parte beligerante, podendo ser formado por ex-integrantes das forças combatentes.

De acordo com o artigo 7º(2)(a) do Estatuto de Roma, a fim de se caracterizar o crime contra a humanidade, deve estar presente o elemento de contexto: a existência de uma política de Estado ou de uma organização voltada à prática de múltiplas condutas (acima referidas), o que justifica o tratamento penal mais grave do que aquele dado aos crimes de tortura, estupro, homicídio ou sequestro cometidos em circunstâncias ordinárias (ou seja, fora da situação de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil).

Assim como definido no Estatuto de Roma, o elemento de contexto dos crimes contra a humanidade não demanda que as condutas estejam relacionadas com situação de guerra (como outrora era exigido pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg), bastando que as condutas sejam parte de um ataque sistemático ou generalizado contra a população civil, levado a cabo por uma política de Estado ou de uma organização. Daí que se diz que crimes contra a humanidade podem ser cometidos em tempos de paz.

Análise

Não se tratando de política de Estado, mas sim de uma organização (por exemplo, o caso das milícias que atuam no continente africano ou no caso de cartéis de drogas no México), a fim de que possa configurar o elemento contextual, a jurisprudência do TPI e a doutrina têm observado alguns critérios não exaustivos para se verificar se uma coletividade não vinculada ao Estado pode configurar uma “organização”, entre eles, que o grupo conte com um comando e estrutura hierárquica bem definidos, que exerça controle sobre certo território e que tenha capacidade de levar a cabo uma política de ataque sistemático ou generalizado contra a população civil. Nesse sentido, discute-se, em razão dessa definição do elemento “política organizacional”, se seria possível o cometimento de crimes contra a humanidade por corporações.

O regime jurídico a que estão submetidos os crimes contra a humanidade, em razão de sua gravidade, traz debates acerca da possibilidade de serem sujeitos à anistia. Os tratados que versam sobre esses crimes (como, por exemplo, o Estatuto de Roma) consolidam a obrigação dos Estados de julgar ou extraditar quem tenha cometido crimes contra os direitos humanos, decorrência do chamado princípio do aut dedere aut judicare. Assim, os Estados não poderiam invocar razões internas para se esquivarem da persecução dos crimes contra a humanidade, como, por exemplo, a concessão de refúgio ou anistia. Todavia, em caso de ser necessária a negociação para por fim a um regime autoritário ou a uma guerra, tem-se admitido a possibilidade de leis de anistia, desde que venham acompanhadas de outros mecanismos, judiciais ou extrajudiciais, de accountability, sejam condicionadas à prévia apuração dos fatos, não se dirijam aos mais responsáveis pelos crimes (notadamente aqueles que planejam e ordenam os atos) e não englobem os crimes mais graves (como tortura, desaparecimento forçado de pessoas, homicídio e violência sexual).

Há debates atuais acerca da possibilidade de se considerar o terrorismo como uma modalidade de crime contra a humanidade, mas há resistência nesse aspecto por se tratar o terrorismo de crime de definição suscetível à disputa política e que poderia servir para criminalizar movimentos de liberação nacional, e também quanto à possibilidade de se interpretar o “ecocício” como crime contra a humanidade, desde que a população civil seja diretamente afetada com a destruição proposital do meio ambiente, a exemplo de contaminação dolosa de água e solo com intuito de causar lesões a saúde e à vida das vítimas.

Referências bibliográficas

BASSIOUNI, M. Cherif. Crimes against Humanity in International Criminal Law. 2. ed. Haia: Kluwer Law International, 1999.
GUTIERREZ POSSE, Hortensia D. T. Elementos de Derecho Internacional Penal. Buenos Aires: De Los Cuatro Vientos, 2006.
RIKHOF, Joseph. “Fewer places to hide? The impact of domestic war crimes prosecutions on international impunity”, In BERGSMO, Morten (org.). Complementarity and the exercise of universal jurisdiction for core international crimes. Oslo: Torkel Opsahl Academic Epublisher, 2010, p. 7-81.
ROBERTSON, Geoffrey. Crimes against humanity: the struggle for global justice. 4. ed. London: Penguin Books, 2012.
TRIFFTERER, Otto (org.). Commentary on the Rome Statute of the International Criminal Court: observers’ notes, article by article. 2. ed., Munique: C.H.Beck, Hart e Nomos, 2008.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos. Brasília: UnB, 2000.
ZAPPALÀ, Salvatore. La justice pénale internationale. Paris: Montchrestien, 2007.

Referências artísticas

Julgamento em Nuremberg (Stanley Kramer, 1961)
Filme
Em 1947, quatro juízes que serviram ao III Reich são julgados por crimes contra humanidade em razão de sua colaboração com o nazismo. A defesa dos juízes no tribunal busca demonstrar que suas ações estavam em consonância com o direito nazista (portanto, não seriam antijurídicas), enquanto a acusação tenta provar a culpa dos réus por terem contribuído para o Holocausto, aplicando leis discriminatórias.

A batalha do Chile (Patricio Guzmán, 1975, 1977 e 1979)
Documentário
Obra documental dividida em três partes (“A insurreição da burguesia”, “O golpe militar” e “O poder popular”) sobre o golpe militar contra o governo de Salvador Allende no Chile e as consequências políticas e sociais decorrentes da violência de Estado contra a população civil durante os anos de chumbo no país latino americano.

Coração das Trevas (Joseph Conrad, 1902)
Livro
O personagem Charles Marlow narra a violência perpetrada pelos europeus durante a colonização do Congo e revela a barbárie do projeto imperialista.

José Carlos Portella Junior
Lattes | ORCID


PORTELLA JÚNIOR, José Carlos. Crimes contra a humanidade. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/crimes-contra-humanidade/31. ISBN 978-85-92712-50-1.