Definição
Campo de estudo que se concentra na aplicação das ciências psi e sociais em indivíduos privados de liberdade, sociedade livre, Poder Judiciário e demais instâncias da justiça, com o objetivo de criar estratégias visando evitar o cárcere, retornar, ou pela primeira vez conviver em sociedade.
Aspectos distintivos
Para esta produção, restou oportuna a divisão dos conceitos de Criminologia Clínica em três dimensões, respeitando, em cada uma delas, as abordagens dos profissionais das ciências sociais e da saúde mental em relação à sua profissão como uma ciência propriamente clínica, com a utilidade de seus métodos aplicados.
Médico-psicológico: se caracteriza pela busca de compreensão do fenômeno crime, centrando-se no autor da conduta como o epicentro da responsabilidade, deixando para segundo plano seu contexto social, vivências, problemas ou sua vida exterior. Em leituras tardias desse modelo, observamos escritos que reconhecem o papel do cotidiano e da sociedade como catalisadores do crime, embora sem atribuir à sociedade nenhuma responsabilidade, limitando-se a considerá-la um elemento adicional, com o poder de vulcanizar o comportamento criminoso já inerte. Sob esse enfoque, o crime é encarado como uma consequência negativa e não natural de uma suposta deformação inerente do autor da conduta criminosa, adotando uma abordagem biologicista e determinista. Dentro desse paradigma, a aplicação do modelo se concentra na relação direta do profissional com o criminoso, aplicando práticas estritamente clínicas durante a execução da pena. A abordagem se baseia na escuta ativa e no diálogo, buscando identificar e trabalhar na resolução das questões internas do indivíduo. O modelo tem como característica a busca incisiva de respostas, laudos detalhados e diagnósticos, na tentativa de prescrever um "tratamento" ou um plano simplista para com o paciente individual.
Psicossocial: se destaca pela abordagem inovadora em relação ao modelo anterior, reconhecendo o crime como um fenômeno natural que sempre aconteceu, acontece e acontecerá. Uma característica fundamental e diferencial desse modelo é a superação da responsabilização exclusiva do indivíduo, passando a considerar os fatores extrínsecos como variáveis independentes no produto crime, não apenas considerando-as como ocorrências internalizadas na mente do criminoso. Nesse paradigma, o diagnóstico deixa de buscar a "cura" para um indivíduo doente, e, em vez disso, por meio de uma escuta compreensiva, procura analisar e compreender os atores situados. A abordagem se assemelha à ideia freudiana da cura pela fala, onde dar voz ao indivíduo torna-se uma ferramenta essencial no processo de entendimento e transformação. Dentro desse contexto, a sociedade assume a responsabilidade ativa na inserção (ou reinserção) do indivíduo na sociedade. O uso de parênteses na última linha é uma resposta às diferentes teorias e perspectivas sobre a posição do criminoso na sociedade. Algumas correntes argumentam que muitos desses indivíduos nunca estiveram verdadeiramente incluídos na sociedade, tornando impossível colocá-los de volta onde nunca estiveram. Por outro lado, existe a noção de uma inclusão perversa, em que esses indivíduos estão situados na sociedade, entretanto, em uma condição vulnerável, muitas vezes ignorada socialmente, até ser literalmente segregada do convívio, exigindo uma reinclusão de maneira apropriada.
Inclusão social: sendo o mais atual dos modelos aqui retratados, o terceiro modelo abraça um enfoque inovador ao abordar as complexas interações sociais que permeiam o fenômeno criminal. Desse olhar, o crime não é simplesmente considerado uma expressão isolada de desvio, mas sim um sintoma de enfermidades sociais mais profundas. A perspectiva de projeto-doença fundamenta-se na ideia ousada de que o crime é uma manifestação patológica da própria sociedade. É imperativo compreender as raízes desse fenômeno e aplicar tratamentos eficazes. Esse enfoque contrasta com abordagens tradicionais que costumam se concentrar exclusivamente no indivíduo criminoso, negligenciando os fatores sociais e estruturais que não apenas contribuem, mas dão origem ao crime. No paradigma das inter-relações sociais, destaca-se a importância de analisar as dinâmicas sociais e estruturas que influenciam a ocorrência do crime. Isso vai além das teorias convencionais, como o labelling approach e sua contraparte, a reação social, reconhecendo o crime como uma existência real em uma sociedade que rotula o desvio como um problema sem, contudo, tomar medidas concretas para solucioná-lo. A ênfase recai sobre a compreensão das dinâmicas sociais e econômicas que podem levar à anomia, um estado de desordem social no qual as normas e valores convencionais perdem sua influência reguladora. A abordagem abolicionista penal, dentro desse contexto, propõe uma reavaliação radical do sistema de justiça criminal. Aqui, o modelo se destaca por não compactuar com o sistema de justiça vigente, invalidando a pena de reclusão como meio de integração. A punição, argumenta-se, não é a solução mais eficaz para lidar com o crime. Em vez disso, o paradigma de inserção social busca estratégias alternativas, com foco principal no diálogo, envolvendo não apenas o indivíduo encarcerado, mas também a sociedade em liberdade e todos os sistemas que regulam o controle social. No que tange essas estratégias, a mera conversa de escada sobre o assunto é de forma mais pura, o que o modelo busca. A normatização desse cenário, o debate em pequenos e grandes grupos é o simples e eficaz exercício do diálogo característico da criminologia clínica. A noção de responsabilização do crime compartilhado com a sociedade sugere que a comunidade como um todo deve ser responsável pela prevenção e tratamento do crime. Isso implica uma abordagem colaborativa, envolvendo não apenas as instituições de justiça, mas também setores sociais, educacionais e de saúde, reconhecendo que a segurança pública é uma responsabilidade compartilhada.
Análise
Ao analisarmos essa trajetória por meio da separação em dimensões, é crucial evitarmos interpretar essas dimensões como meramente substitutivas e evolutivas, cada uma delas possui uma importância singular, direcionada a propósitos específicos. O termo “dimensões” foi utilizado ao invés de “gerações”, justamente por esse propósito. Destaco a notável distância da "clínica" à medida que avançamos nas dimensões dos modelos. Essa evolução natural incita uma reflexão sobre a pertinência de rotular todo esse processo como criminologia clínica. Contudo, essa denominação não apenas perdura, mas se justifica pela contínua dedicação ao entendimento e tratamento do fenômeno criminal. No âmbito das abordagens que se distanciaram da clínica tradicional, a essência perdura na busca incessante por soluções mais humanas e eficazes, levando em consideração a teia das interações sociais. O emprego do termo "criminologia clínica" reflete o reconhecimento de que o fenômeno criminal não pode ser plenamente compreendido apenas por meio de lentes jurídicas ou sociais. Ele exige uma compreensão profunda dos indivíduos e das dinâmicas sociais. Assim, ao longo das diversas dimensões, a criminologia clínica mantém sua proposta original de explorar novas abordagens, superando estigmas e limitações dos sistemas punitivos tradicionais. O propósito é alcançar uma compreensão mais holística e integrada do comportamento criminoso.
Cabe trazer para a análise de forma breve os três modelos de criminologia clínica para contextualizar a discussão. O primeiro modelo, mais vinculado à clínica tradicional, centra-se predominantemente no indivíduo criminoso, buscando compreender suas motivações e traumas para fornecer um tratamento. O segundo modelo, mais sociológico, amplia a análise para incluir fatores sociais, mas ainda mantendo uma ênfase considerável no criminoso individual e como ele pode lidar com seu passado de forma saudável. O terceiro modelo, rompe com a abordagem tradicional, concentrando-se nas dimensões sociais e estruturais que permeiam o fenômeno criminal. Essa evolução destaca o afastamento gradual da clínica tradicional, mas a essência da criminologia clínica persiste.
Zaffaroni diz que é necessário um saber que permita ajudar as pessoas criminalizadas a superar ou reverter a deterioração causada pelo sistema penal e o condicionamento prévio, que fizeram, de cada uma dessas pessoas, um bom candidato para o sistema, um saber que permita ajudar as pessoas criminalizadas a reduzir seus níveis de vulnerabilidade perante o sistema. Esta é a função da criminologia clínica. Seria ainda conveniente substituir seu nome pelo de ‘clínica da vulnerabilidade’.
Referências bibliográficas
DE GREEF, Etienne. Les instincts de défense et de sympathie. Paris: Presses Universitaires de France, 1947.
HERRERO, César Herrero. Tratado de criminologia clínica. Madrid: Editorial Dykinson, 2013.
LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2017
SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminologia: aproximación desde un margen, vol. 1. Santa Fé de Bogotá: Editorial Temis, 1988.
Referências artísticas
O Meu Guri (Chico Buarque, 1981)
Canção musical
A música retrata a realidade de comunidades cariocas, onde os jovens, em um cenário de extrema vulnerabilidade, se rendem ao crime, e como isso se reflete em suas famílias.
Pocket Monsters: The Sparkling of Terapagos (2023, episódios 31-32)
Animação japonesa
O episódio duplo da conhecida animação japonesa 'Pokémon' foca na jornada de Lapras, um Pokémon que foi abandonado por seu treinador por - até o momento - razões desconhecidas. Agora, confuso e sem rumo, Lapras, antes um dos seis heróis do treinador, adota uma vida criminosa, atraindo barcos para as névoas e saqueando-os. Após muitos anos, Lapras se reencontra com seus antigos amigos e decide se unir a eles em uma busca pelo seu antigo mestre.
Pyramid of Bones (The Voidz, 2018)
Canção musical
A canção explora e dialoga sobre a perversão instalada pelas instâncias de poder, discutindo que existem regras diferentes para quem está no poder, destacando a distribuição desigual de autoridade e a insistência em que todos são iguais. Isto pode servir como uma crítica às estruturas sociais que perpetuam desigualdades e falsas noções de equidade.
Mateus Augusto Silveira Ribeiro
Lattes | ORCID
RIBEIRO, Mateus Augusto Silveira. Criminologia clínica. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); ABREU, Carlos A F de; RIBAS, Eduarda Rodrigues (orgs.). Dicionário Criminológico. 4. ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2023. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/criminologia-clinica/136. ISBN 978-65-87298-15-3.