Defesa social

Defesa social

Definição

Movimento de política criminal que preconiza a mudança de parâmetros e métodos de aplicação das sanções do direito penal, ora através da conscientização da sociedade, ora de sua proteção rígida.

Aspectos distintivos

Trabalhar o conceito de Defesa Social exige considerações iniciais: a (Nova) Defesa Social tem como objeto a forma de intervenção/reação do Estado quando ocorre um fato social, uma conduta ou uma situação negativa ou indesejável arbitrariamente considerado como crime; ao se estudar detidamente a Defesa Social se depreende que ela pode ser vista como uma metástase da doutrina positivista; a Defesa Social propunha uma releitura da aplicação do Direito Penal, passando da concepção antiga que protegia a sociedade através da simples repressão ao crime quando desobedecida alguma norma inserida no conjunto das regras do direito, por uma concepção moderna de prevenção do crime e 'tratamento' dos delinquentes, reconhecendo a existência de problemas sociais e criminológicos; neste texto surgirá a mesma palavra com duas acepções diferentes: 'tratamento' como comportamento e conduta na interação com outros indivíduos, e 'tratamento' quando se referir à reação do Estado para o indivíduo que for considerado como transgressor; por fim, 3 são as noções básicas a serem apreendidas e que fomentaram o surgimento da Defesa Social: 1) a preocupação em assegurar, não só o castigo puramente expiatório, mas uma eficaz proteção da sociedade; 2) o desejo de provocar, não só uma pena simplesmente expiatória e retributiva, mas uma melhora de conduta, ou mesmo uma reeducação do delinquente – para Gramatica, não para Ancel; 3) a preocupação em promover ou em conservar, no âmbito da justiça penal – na visão de Ancel, mas não de Gramatica – e superando simples exigências da técnica processual, a noção da pessoa humana, em relação a quem não se admite a aplicação senão de um tratamento verdadeiramente humano.

Antes de ver as diferentes fases que perfazem o desenvolvimento da Defesa Social (a partir de 1910), importa dizer que algumas de suas ideias e diretrizes são encontradas em pensadores mais antigos. Thomas Morus, no século XVI, defendeu ideias como a abolição da pena de morte, substituição das penas corporais, reabilitação pelo trabalho e tratamento humano; Beccaria, no século XVIII, – bebendo na fonte de seu mestre Montesquieu – pensa e discursa sobre a necessidade de uma revisão nos valores da sociedade em busca de um equilíbrio entre a defesa dos direitos das sociedades e dos direitos dos indivíduos.

Adolphe Prins, em 1910, com a obra La Défense Sociale et les transformations du droit penal, marca o início da 1ª fase da Defesa Social defendendo que a noção de responsabilidade moral (retribuição ao autor do 'mal') já não atendia mais as necessidades da sociedade sendo substituída pela noção de periculosidade do autor. Para Prins, a defesa da sociedade deve ser levada a cabo mesmo que para isso seja necessário solapar direitos humanos e direitos fundamentais dos indivíduos.

Os movimentos legislativos na Europa, América Latina e EUA, que ocorreram no período entre guerras, marcam a 2ª fase da Defesa Social, onde se percebeu uma preocupação crescente com uma justiça penal mais humana e onde surgem as primeiras medidas de segurança.

O nome Defesa Social foi utilizado por governos autoritários para justificar o recrudescimento no enfrentamento daqueles considerados como transgressores. Mesmo não mantendo em suas políticas nenhuma das prerrogativas originais da Defesa Social, esta é considerada sua 3ª fase.

O reconhecimento e a consagração dos direitos humanos e dos direitos fundamentais no pós-guerra marcam a 4ª fase da Defesa Social. Nesta esteira estão a defesa intransigente desses direitos, a obrigatoriedade de imposição de limites ao poder persecutório e uma ampla reforma prisional. Nesta fase, a Defesa Social inicia movimento de aproximação com as ciências criminológicas e busca a construção de uma política criminal baseada em estudos científicos e preocupada com a dignidade humana.

A 5ª fase da Defesa Social – a partir dos anos 1950 – é marcada pelo embate duro, porém respeitoso, do preconizado por Filippo Gramatica de um lado e Marc Ancel de outro. Estas correntes foram denominadas de avançada/extrema e moderada/reformista, respectivamente. Gramatica se preocupava menos com a proteção da sociedade, mas sim em buscar seu aperfeiçoamento através da melhora de cada um de seus cidadãos, relegando ao Estado um papel de gerenciador das convenções preestabelecidas e com limites claros para sua atuação. O italiano defendeu a substituição do Direito Penal por um 'Direito de Defesa Social' que se ocuparia em adaptar o indivíduo ao convívio social e não em lhe aplicar sanções penais. Dois conceitos fundamentais no pensamento de Gramatica são: subjetivação (necessidade de se dar mais valor ao indivíduo do que aos bens protegidos pelo Direito Penal) e antissocialidade (que deve ser abstraída quando da reação social a um fato, uma conduta ou uma situação negativa social ou indesejável arbitrariamente consideradas como crime). Marc Ancel professou que a Defesa Social deve se integrar ao direito penal positivo, buscando transformá-lo, preservando-o como expressão do Estado de Direito. Afirmou que o seu ponto de partida foi a proteção do indivíduo e sua dignidade, mas o faz a partir da ideia de que existe um 'direito de ressocialização' que obriga o Estado a promover a reintegração do indivíduo à sociedade que não mais o discriminará, dispensando-lhe 'tratamento' sempre que possível.

Análise

A Defesa Social, conforme professada por Prins, focava sua análise na noção de periculosidade do indivíduo (naturalmente perigoso), enquanto Ancel opta por centrar o estudo na personalidade do indivíduo. Observe-se que nos dois casos, a centralidade está no indivíduo, desconsiderando todos os demais fatores que podem levá-lo a praticar um fato, uma conduta ou uma situação negativa social ou indesejável arbitrariamente consideradas como crime. Isto dá razão aos que acusam a Defesa Social de ser uma consequência do positivismo, uma metástase. Ainda há que se considerar, como o fez Erwin R. Frey, que desta forma podemos falar em um 'puro direito do autor'. Criminologicamente, pode-se absolver Prins por desconsiderar outras áreas de saber, como a criminologia, pois em seu tempo as teorias conhecidas se preocupavam em observar apenas o indivíduo. Porém, Marc Ancel conheceu as teorias da aprendizagem, da rotulação, das subculturas criminais, da anomia entre tantas outras.

As propostas de Prins e Ancel que incluíam a manutenção da reação do Estado a um fato, uma conduta ou uma situação negativa social ou indesejável arbitrariamente consideradas como crime restrita ao âmbito do Direito Penal, insistem em um modelo que os séculos demonstraram ser ineficiente. Para eles somente o Direito Penal e seus estudiosos e os criminalistas (não criminólogos) eram capazes de proteger a sociedade. No entanto, Marc Ancel com o passar dos tempos vai aderindo às ideias de trans e interdisciplinaridade, mas manteve o estudo da personalidade do indivíduo como centro da mensuração da reação estatal. A novidade esteve nas proposições de Gramatica, que buscava no próprio seio social a solução desses conflitos através da educação e da adaptação, enquanto Ancel afirmava que esta não era a aptidão do sistema de justiça penal como conformado, mas sem considerar que era contra este sistema que militava o italiano. Seria Gramatica um precursor das ideias abolicionistas penais de Louk Hulsman?

Em relação ao pensamento de Prins de que a proteção da sociedade deveria prevalecer, inclusive, aos direitos humanos e aos direitos fundamentais, é necessário contextualizar: a obra onde escreve este pensamento é de 1910, portanto anterior aos horrores vividos nas duas grandes guerras do século XX. Na mesma senda, há que se observar que as reformas legislativas mencionadas como marcos da 2ª fase da Defesa Social, ao mesmo tempo em que trouxeram ideias humanistas de medidas de segurança e medidas de defesa social tinham embutidas, de forma perversa, a possibilidade de estas se prolongarem no tempo, enquanto mantidas ou não cessadas as circunstâncias que levaram à sua imposição.

As influências da Defesa Social podem ser percebidas tanto na common law quanto na civil law. Em relação a civil law, sistema adotado pelo Brasil, encontramos no Código Penal, em seu Título VI, a possibilidade de aplicação de medidas de segurança, inclusive com menções à sua permanência no tempo enquanto não cessar a periculosidade (conceito defendido por Prins) do indivíduo. Em relação a personalidade do indivíduo (conceito defendido por Marc Ancel) encontramos diversas menções (art. 43, III; art. 59; art. 67; art. 71, parágrafo único; art. 77, II) onde o legislador permite que, através da análise pelo julgador, seja definido tipo, duração e suspensão condicional da pena.

A Defesa Social como movimento de política criminal mantém até hoje enorme influência no ideário de legisladores, principalmente aqui no Brasil, onde muito se renuncia à ciência e aos estudos acadêmicos. Alguns de seus postulados – exceto os de Gramatica – soam sedutores para o corpo social que internaliza medo, pré-conceitos e preconceitos muito rapidamente.

Percebe-se, claramente, que a Defesa Social de Marc Ancel preserva com suas ideias - assim como todos os modelos e movimentos tradicionais de políticas criminais - as ligações com o ideário contratualista; mesmo que divirjam sobre o homem, o crime e a pena, restam firmes o ideal falacioso de consenso e a homogeneidade social.

Parafraseando Maria Lúcia Karam e Orlando Zaccone, digo que, em um país que escolhe, culpa, condena e executa os pobres, marginalizados, de pele escura e desprovidos de poder – os 'indesejáveis' –, a Defesa Social fornece os argumentos que sustentam o intolerável poder dado ao Estado de deliberadamente infligir dor a alguém.

Referências bibliográficas

ANCEL, Marc. A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista (La défense sociale nouvelle). Trad. Osvaldo Melo. Prefácio: Heleno Cláudio Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
ARAÚJO, J. V. de. A União Internacional de Direito Penal. In: Revista Acadêmica da Faculdade de Direito, vol. 1, n. 1, 1891, p. 40-43. Disponível em: https://bit.ly/3C3hSlF. Acesso: 02 ago.2022.
GRAMATICA, Filippo. Principes de défense sociale. Prefácio: Marc Ancel. Paris: Cujas, 2000. Disponível em: https://bit.ly/3ybVIfW. Acesso em: 02 ago. 2022.
PRINS, A. La defensa social y las rransformaciones del Derecho Penal. Madrid: Hijos de Reus, 1912. Disponível em: https://bit.ly/3CpJKSq. Acesso em: 02 ago.2022.Encontre em: https://amzn.to/3rrOil6.
SILVA, Evandro Lins e. De Beccaria a Filippo Gramática. In: ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello (org.). Sistema penal para o terceiro milênio: atos do colóquio Marc Ancel. pp. 17-43. Rio de Janeiro: Revan, 1991. Disponível em: https://bit.ly/3LZyRKd. Acesso em: 02 ago.2022.

Referências artísticas

Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971)
Filme
Baseado no livro de mesmo nome, escrito por Anthony Burgess. O personagem Alex de Large – interpretado por Malcolm McDowell, após preso e condenado por diversos crimes é submetido a "tratamento experimental" que através da lavagem cerebral transforma o indivíduo, ora violento, em alguém incapaz de cometer novos crimes. Presente está a séria discussão sobre limites e responsabilidades do Estado em relação à aplicação de tratamentos de pessoas que estão sob sua tutela por terem sido condenadas por este próprio Estado. Encontre em: https://bit.ly/3fGbd9H.

Spiderhead (Joseph Kosinski, 2022)
Filme
Baseado em conto escrito em 2010, por George Saunders (que é também um dos roteiristas). Jeff (Miles Teller) e Lizzy (Jurnee Smollett) estão entre os presos que se voluntariaram, em troca de diminuição de suas penas, para receberem um "tratamento" experimental que utiliza drogas químicas para alterar as emoções das cobaias. O filme discute qual o limite ético na aplicação de tratamentos em pessoas privadas de liberdade. Encontre em: https://bit.ly/3UZuLWm.

A Gente (Aly Muritiba, 2013)
Documentário
Ex-servidor penitenciário, o diretor Aly Muritiba expõe neste documentário a rotina de 28 servidores da equipe Alfa (sua antiga equipe) no dia a dia dentro de uma casa prisional. Os servidores que tentam dispor às pessoas privadas de liberdade "tratamento humanizado" são, constantemente, pressionados por seus superiores hierárquicos a não mais assim se portarem. Encontre em : https://bit.ly/3e2YEVm.

Carlos A. F. de Abreu
LattesORCID


ABREU, Carlos A. F. de. Defesa social. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); ABREU, Carlos A F de; RIBAS, Eduarda Rodrigues (orgs.). Dicionário Criminológico. 4. ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2023. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/defesa-social/128. ISBN 978-65-87298-15-3.