Definição
Formas de opressões praticadas pelos seres humanos contra outras espécies, através da atribuição de valores éticos e morais a respeito de quais vidas serão valorizadas e respeitadas, em detrimento daquelas objetificadas e descartadas.
Aspectos distintivos
Durante a realização de um protesto contra a experimentação animal na Universidade de Oxford em 1970, o psicólogo Richard Ryder cunhou a expressão a fim de definir as ações humanas que se colocam hierarquicamente superiores a outras espécies (biologicamente), como os animais não humanos, violando-os e objetificando-os. Posteriormente o termo foi desenvolvido por outras e outros autores e autoras, a partir de diversos pontos de vista – utilitaristas, abolicionistas, interseccionais (antirracistas e antissexistas), criminológicos, e jurídicos.
Um grande marco na luta antiespecista foi a Declaração de Cambridge, realizada em 2012, oportunidade em que se reuniram grandes neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos, incluindo o físico Stephen Hawking, a fim de dialogar e avaliar os substratos neurobiológicos da experiência consciente e dos comportamentos dos animais humanos e não humanos. Na oportunidade, se comprovou a existência de consciência nos animais não humanos, ratificando que os animais são seres dotados de senciência e reações intencionais, bem como comprovando que sentem dor e reagem a diferentes emoções. O texto incluiu tanto os animais não humanos mamíferos e aves, como também polvos e outras espécies marinhas.
A crítica central da luta especista está inserida no contexto de seletividade de tratamentos dispensados a depender da espécie, geralmente o posicionamento de sobreposição da espécie humana sobre a não humana. Enquanto algumas formas de abuso animal são reprovadas socialmente, outras, contudo, são comumente aceitas como, por exemplo, o uso de animais em experiências científicas, vestuário, alimentação, entretenimento, e também tráfico de animais selvagens, e violências contra animais domésticos.
Análise
As práticas especistas se enquadram em um mecanismo específico de violência que refletem diversas ações sociais e políticas, perpetradas tanto institucionalmente, como socialmente, baseadas no preconceito da espécie, como as formas de opressão, genocídio e tortura de animais não-humanos. No entanto, algumas críticas em relação ao tema são fundamentais para a compreensão e construção de um debate crítico e comprometido com a pauta antiespecista e abolicionista animal.
Autoras e autores têm salientado acerca da necessidade de buscar e exercitar uma linguagem antiespecista quando da utilização de termos pejorativos para se referir aos animais. A própria referência da palavra animais é problemática, uma vez que, de certo modo, somos todos e todas animais (humanos e não humanos). No entanto, também há divergências quanto ao conceito de animais não humanos, pois esta denominação pressupõe que os seres humanos ainda se mantêm revestidos de privilégios, os quais podem definir os animais como seres meramente desprovidos de qualidades, estas que, supostamente, seriam pertencentes apenas ao homo sapiens.
Nesse sentido, outras críticas semânticas podem ser relacionadas às práticas especistas como as opressões de gênero e raça. Algumas definições terminológicas comparativas representam mulheres e pessoas negras como os animais não humanos, não apenas no sentido de reduzir a identidade e humanidade de alguns grupos, mas a partir disso, também legitimam as práticas especistas. Por esta razão, termos como vacas, cadelas, burros, filhotes, macaco, pedaço de carne e carne fresca, são carregadas de simbolismos que nada mais são do que funcionais para as práticas racistas, sexistas e especistas.
Dentro da perspectiva criminológica crítica, o tema surge como sendo um dos enfrentamentos a ser realizado contra o sistema capitalista e as práticas androcêntricas e antropocêntricas. O papel das e dos criminologistas nesse contexto é de romper com o ideário de que os animais não humanos são seres sem valor próprio, e meros objetos de uso dos seres humanos. A criminologia antiespecista visa a identificar as diversas formas de violências sobre os animais não humanos, domésticos, selvagens e aqueles considerados para consumo humano.
A problemática central apontada pela luta antiespecista reside na ausência de interesse em se buscar uma definição que atribua aos animais não humanos status de sujeitos de direitos, bem como reconheça e aponte a existência da senciência nesses seres. Isso porque, ainda há resistência política e econômica de grupos poderosos frente às demandas para a aplicação de medidas estruturais/institucionais que visem a reverter o quadro de exploração e violência sobre os animais não humanos.
As pautas evocadas pela luta antiespecista podem ser encontradas por meio de críticas contundentes às formas abatimento de animais pra consumo humano (indústrias da carne), finalidades esportivas e de entretenimento (rodeios, circos, zoológicos, vaquejadas), interesses de lucratividade e ganho comercial (testes em animais para cosméticos, educacionais, medicamentos), como também frente à ausência de interesses políticos na aplicação das leis e relações políticas que fortaleçam os projetos em coletividade com organismos governamentais.
As práticas especistas são permeadas por questões que ultrapassam as pautas religiosas e culturais, no entanto, ainda se torna centro de debate quando o assunto se direciona para os direitos dos animais versus direito à liberdade religiosa. No entanto, tal centralização do debate, reflete, nada mais do que, a perpetuação das perseguições racistas de intolerância religiosa que desviam o olhar da luta antiespecista séria e comprometida com o abolicionismo animal.
Assim como alguns contrapontos são realizados contra as formas comparativas de opressões especista x racista x sexista, autores e autoras, sobretudo oriundas de movimentos negros antiespecistas reconhecem e apontam a necessidade da abordagem de uma análise interseccional acerca das lutas que permeiam as sociedades estruturadas no sistema capitalista neoliberal. Contudo, salientam que as diferentes opressões não devem ser hierarquizadas, tampouco comparadas, mas sim reconhecidas e potencializadas.
Muito comum é a comparação entre o especismo/racismo/sexismo, enquanto práticas consideradas imorais e objetificadoras, no entanto, pouca profundidade é atribuída a estes apontamentos, o que na verdade acaba por ter o efeito reverso, tornando a luta antiespecista isolada e distanciada das demais. O fato é que muito embora as lutas antirracistas, antissexistas e antiespecistas sejam comuns e análogas, não são iguais, sendo muitas vezes comparadas de modo que retroalimentam a sistematização do racismo estrutural, e opressões de gênero, introduzindo no aspecto social que as lutas antirracistas e antisexistas só seriam validadas caso beneficiasse a luta antiespecista.
Nesse sentido, a ligação entre as comparações entre as lutas antirracistas, antisexistas e antiespecistas ganham forma, pois são vistas e propagadas de forma a desvalorizar e a invisibilizar a produção intelectual dos povos negros, sobretudo de mulheres, tanto no que diz respeito às questões culturais, quanto religiosas, gerando um verdadeiro epistemicídio e desvalorização das lutas.
Na mesma senda, a produção do conhecimento científico universal (branco masculino hétero ocidental), hipervaloriza o saber distanciado dos fatores da natureza, por aduzirem que, historicamente, ela impedira o progresso e os processos civilizatórios do homem, razão pela qual a produção colonizadora ganhou grande destaque na academia, e hoje permanece (re)produzindo opressões e não combatendo-as.
De toda maneira, a luta interseccional torna-se temática central nas lutas antiespecistas comprometidas com as demais opressões oriundas de uma mesma racionalidade que as sustenta. Por esta razão, a luta antiespecista, antirrascista, e antissexista compartilham de um mesmo substrato onde a natureza está conectada às opressões existentes, bem como onde este entrelaçamento precisa ser direcionado aos espaços de produção epistêmica, onde permeiam pensamentos e teorias que reforçam o levante de universalização e abstração das diferentes lutas.
Assim, o movimento antiespecista contemporâneo, por assim dizer, busca identificar o lugar de fala das lutas antiopressões com a causa animal, de forma a reconhecer as singularidades e identificar as potencialidades de cada grupo de luta e resistência, sem desvalorizá-las e/ou apagá-las, a fim de que seus integrantes busquem movimentar e transformar as bases de mantença da exploração e dominação sobre as mulheres, povos originários, negros e animais não humanos.
Referências bibliográficas
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NURSE, Agnus. Animal harm: perspectives on why people harm and kill animals. England: Ashgate, 2013.
SOLLUND, Ragnhild Aslaug. Global harms: ecological crime and speciesism. Nova Science Publishers, 2008.
Referências Artísticas
Terráqueos (Shaun Monson, 2005)
Documentário
Narra, através do ator e ativista dos direitos animais Joaquin Phoenix, a dependência da humanidade sobre os animais a fim de obter alimentação, vestuário e diversão, além do uso em experimentos científicos. Compara o especismo da espécie humana com outras relações de dominação, como o racismo e o sexismo.
Sem tíitulo (Soko Tierschutz e Cruelty Free International, 2019)
Fotografia
Durante quatro meses, um investigador da ONG alemã Soko Tierschutz trabalhou dentro do Laboratório de Farmacologia e Toxicologia (LPT), localizado em Hamburgo, na Alemanha. Em parceria com a ONG inglesa Cruelty Free International, foram divulgadas imagens e vídeos de práticas de maus tratos contra os animais dentro do laboratório, os quais são submetidos a testes de toxicologia para as indústrias farmacêutica, industrial e agroquímica.
Karine Agatha França
Lattes | ORCID
FRANÇA, Karine Agatha. Especismo. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 2.ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2021. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/especismo/76. ISBN 978-65-87298-10-8.
“Os animais do mundo existem para seus próprios propósitos. Não foram feitos para os seres humanos, do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens.”
WALKER, Alice. "The animals of the world exist for their own reasons", Vegetarian Times. jul, v. 143, p. 68, 1989.