Definição
Suspensão (que deveria ser temporária) do ordenamento vigente em um Estado, em momentos excepcionais, a fim de garantir a existência do próprio ordenamento.
Aspectos distintivos
A definição foi sintetizada a partir dos estudos de Giorgio Agamben acerca de um instituto que concede poderes extrajurídicos ao Estado de agir em momentos de excepcionalidade, inclusive com o uso da força, sendo que todos os atos praticados neste interregno estarão livres de receberem qualquer tipo de sanção. Consideração inicial importante é de reconhecer que o Estado de Exceção não se origina de uma tradição absolutista, ao contrário, é um instituto advindo da tradição democrático-revolucionária.
Agamben analisou profundamente dois controversos e antagônicos pensadores alemães do início do século XX, Carl Schmitt e Walter Benjamin.
Para o primeiro o Estado de Exceção seria ferramenta de utilização exclusiva do “soberano” (por estar fora da ordem jurídica estabelecida) que poderia dela fazer uso para suspender a Constituição in toto; portanto, desaparece o Direito, mas o Estado permanece na figura deste “soberano”. As ideias de Carl Schmitt foram publicadas em 1922 em seu livro Teologia Política (Politische Theologie) na vigência da Constituição de Weimar de 1919. Schmitt utiliza de um raciocínio teológico, para fundamentar sua confiança no poder de decisão de um “soberano”, de que se Deus é soberano e alguém na terra é seu representante, este também deve ser considerado “soberano”.
Walter Benjamin aponta a realidade alemã do início do século XX como um Estado de Exceção Permanente, baseado nas experiências e observações daqueles que eram oprimidos pelo sistema, e afirma que é necessário construir um conceito histórico que se coadune com a realidade empírica e não apenas pelo tecnicismo. Para Benjamin, o Estado de Exceção logra êxito em se instalar nos Estados sempre que aqueles que poderiam lhe fazer oposição o veem apenas como regra histórica que permite o progresso da sociedade, justamente por não ter um conceito definitivo. Na concepção Benjaminiana a legitimidade para decretação do Estado de Exceção não pode advir do Direito Natural, ou seja, de Deus conforme afirmação de Schmitt, e sim, do Direito Positivo. O Estado de Exceção deve ser uma decisão democrática, para Benjamin, pois, o Direito teme a subversão da ordem caso o poder se concentre nas mãos de apenas um homem e alerta que a história é próspera em exemplos de grandes criminosos que foram admirados por seus povos.
Agamben ensina que para a decretação do Estado de Exceção não é necessária sua previsão constitucional, uma vez que seu locus é indefinido. O filósofo diz que para que tenha sucesso, o Estado de Exceção deve aproximar e articular os aspectos político-jurídicos onde haja um espaço de indecidibilidade e que seja respeitado o direito à vida enquanto perdurar a suspensão das normas. Porém, se a representação destes aspectos for dada a uma só pessoa o sistema político-jurídico poderá se transformar em uma máquina letal. O Estado de Exceção aniquila não somente o Direito, mas também a política e a democracia. Seus efeitos são nefastos e de difícil reparação. Nos modelos atuais o “soberano” é o mercado atendendo aos interesses de uma elite invisível e ilocalizável, o que permite inferir que o Estado de Exceção é uma exigência do atual modelo de dominação neoliberal.
O Estado de Exceção Permanente em que vive a sociedade brasileira é percebido por Guillermo O’Donnell que afirma que a necessidade de sermos permanentemente tutelados faz com que apesar de diversos governos, eleitos de forma democrática, já terem se instalado, ainda não se viu a “segunda transição”, que, por ser mais complexa é também mais demorada e que resultaria em um “regime verdadeiramente democrático, em que compareça uma sólida sociedade democrática”. Para o politólogo, uma sociedade que se mantenha “profundamente autoritária” hostiliza qualquer avanço em relação aos direitos humanos, o que “explica a facilidade com que a exceção não só é assimilada, como também dissimulada em seu seio”.
O estudo do Estado de Exceção para a criminologia possui extrema relevância e adequabilidade, principalmente na análise da atual situação brasileira com o recrudescimento de táticas de exercício do poder de forma abusiva e violenta.
Análise
Há que se apontar os enormes riscos à democracia e à sociedade nos Estados de Exceção. A supressão de direitos e garantias atingem, majoritariamente, as classes e os segmentos mais vulneráveis, mantendo intactos os privilégios de quem circunda o poder. O poder ilimitado atribuído a uma pessoa já produziu resultados nefastos facilmente identificáveis ao longo da história. Schmitt defendeu em uma obra anterior à Teologia Política que um Estado progride mais sob a administração de um ditador, pois os legisladores se perdem em meio a discussões prolongadas e se veem atrelados aos compromissos assumidos previamente. O Terceiro Reich fez uso do pensamento Schmittiano. Portanto, há que se ter cuidado e estar sempre alerta na defesa da democracia. Benjamin instiga o envolvimento popular na defesa do Estado e da democracia dizendo ser nossa a tarefa de instalar um verdadeiro e legítimo Estado de Exceção na resistência contra o avanço dos ideais fascistas. Muito próximo de nossa realidade atual. Vivemos tempos de intervenções militares em comunidades vulneráveis, atiradores em helicópteros, desincentivo e cerceamento à educação e à pesquisa, ataques à liberdade de expressão (censura de filmes) e à liberdade de imprensa, projetos de lei que propõem alterações nas leis penais com enfoque no maior encarceramento e segregação urbana, medidas de aceleração da erosão da consciência constitucional, enfrentamento aberto entre os Poderes, letalidade institucional crescente, discursos de ódio e discriminatórios. Vivemos sob um Estado de Exceção Permanente. Um Estado de Exceção Permanente muito próximo de se transformar em um estado de terror.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Org. e trad. João Barrento. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
O'DONNELL, Guillermo. “Democracia delegativa?”, Revista Novos Estudos, CEBRAP, n. 31, p. 25-40, out. 1991.
SCHMITT, Carl. Dictatorship: from the origin of the modern concept of sovereignty to proletarian class strugle. Trad. Michael Hoelzl e Graham Ward. Malden: Polity Press, 2014.
SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
Referências artísticas
Notícias de uma Guerra Particular (João Moreira Salles e Kátia Lund, 1999)
Documentário
Elaborado nos anos de 1997 e 1998, o referido trabalho relata a triste realidade do cotidiano dos moradores do morro Dona Marta que enfrentam cotidianamente a violência que se manifesta de diferentes formas.
Ensaio sobre a cegueira (José Saramago, 1995)
Livro
O escritor português José Saramago narra uma epidemia misteriosa que deixa as pessoas cegas instantaneamente. Para enfrentar o caos que se segue o Estado adota medidas de exceção suprimindo direitos, inclusive o direito à vida.
Carlos A F de Abreu
Lattes | ORCID
ABREU, Carlos A F de. Estado de exceção. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/estado-de-excecao/40. ISBN 978-85-92712-50-1.