Definição
Área de conhecimento dentro da vitimologia que busca visibilizar as vítimas de danos ambientais, especialmente identificar e apontar os verdadeiros responsáveis pelos processos de vitimização seletiva, quais sejam, os grandes protagonistas do poder econômico e político.
Aspectos distintivos
A expressão foi cunhada e desenvolvida em 1998, por Christopher Williams, como designação às ações e omissões humanas que produzem danos sociais e ambientais, afetando a vida de inúmeras populações, presentes e futuras, por meio de alterações no ecossistema, através de fatores químicos, físicos e psicossociais.
Teve como base a inserção das vítimas de poder na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade pela ONU em 1985, a qual passou a representar os direitos das vítimas de crimes estatais que não estavam previstos em legislações penais nacionais, bem como levou a novas reflexões e abordagens acerca das perspectivas das vítimas de danos socioambientais.
Assim, a partir desse marco se desenvolve uma nova epistemologia que visa a identificar e apontar as relações concentradas nos estudos sobre vitimologia ambiental, como os danos socioambientais ocasionados pelos Estados, em conjunto com o mercado e as corporações, os quais geram uma miríade de vítimas desproporcionais em comparação aos crimes comuns.
Dessa nova análise sobre a vitimização ambiental, foram excluídos os desastres naturais, pois, muito embora estes sejam decorrentes de ações humanas, podem ser confundidos e banalizados como causas naturalísticas. Sendo assim, consolidou-se o significado de autores e vítimas de danos socioambientais para melhor representar a proporção das vitimizações.
Análise
A vitimização ambiental originou-se da ampla vitimologia, tendo esta sido conceituada, mais precisamente, no período pós-guerra, enquanto carga teórica crítica de análise dos processos de macrovitimização oriundos do holocausto nazista. Esta episteme foi ampliada, posteriormente, em decorrência do reconhecimento do grande apagamento e invisibilização de vítimas de danos massivos cometidos no passado, sobretudo, contra populações negras, mulheres e indígenas.
Apesar de pesquisadores e pesquisadoras discutirem há longa data o protagonismo das vítimas frente aos danos sofridos, o primeiro criminologista a abordar o conceito de vitimologia foi Benjamin Mendelsohn, o qual partiu de um ponto de vista em que as vítimas não comportavam apenas o campo passivo, mas também eram representadas de forma ativa, atuando como autoras nos processos de vitimização. Esta explicação foi enquadrada na chamada vitimologia tradicional, sendo amplamente criticada por teóricos e teóricas contemporâneas, no sentido de que a análise realizada por Mendelsohn, além de ser individualista, responsabiliza e culpabiliza as próprias vítimas ambientais, asseverando, portanto, a reprodução e legitimação de técnicas de negação dos danos socioambientais produzidos pelos agentes poderosos.
Na América Latina, o tema passou a ser desenvolvido de forma mais assídua, enquanto método de análise criminológica, especialmente por Lola Aniyar de Castro, Ester Kosovski e Elena Larrauri, as quais trataram da vitimização ambiental de forma multi e interdisciplinar, abarcando as singularidades das diferentes reações e ações das vítimas dentro de um contexto de crime/dano, especialmente mirando nas ausências epistemológicas a respeito da criminalidade dos poderosos, e dos processos que invisibilizam e culpabilizam as vítimas ambientais dentro do próprio campo da vitimologia.
A proposta das teóricas e teóricos acerca do desenvolvimento e disseminação do conceito da vitimização ambiental, está justamente no sentido de romper com a perspectiva de uma vitimologia convencional limitada, para então expandi-la e radicalizá-la, com vistas a agir subversivamente diante de circunstâncias que legitimam as práticas violadoras, tanto de seres humanos, quanto não humanos, assim como mirar seu olhar para as condutas danosas dos poderosos, não tipificadas nas legislações penais nacionais.
Pesquisadores e Pesquisadoras têm apontado que a vitimização ambiental produzida pelos agentes poderosos (Estados, mercado e grandes corporações) podem ser caracterizadas como ações/omissões mais graves no sentido de comparação com os crimes tradicionais. Isso porque, os agentes que cometem tais danos raramente são criminalizados, e responsabilizados, tanto socialmente, quanto juridicamente.
Abordagens abolicionistas se encaixam nesse cenário, em razão de que não se trata de maximizar as instâncias punitivas para abranger os crimes estatais, tendo em conta que tal decisão continuaria por legitimar as estruturas dominantes, as quais são aplicadas com afinidades seletivas para beneficiar os próprios detentores de poder. No entanto, apontam que tais reflexões devem ser provocadas, a fim de se pensar em como (re)construir o imaginário social, político e midiático a respeito dos processos de vitimização ambiental, bem como, buscar abordagens decoloniais para melhor compreender o fenômeno e evidenciar as interpelações das vítimas que passaram e passam por estes danos.
Os processos de vitimização ambiental apresentam distintas características, incluindo as reações das vítimas que podem ocorrer por meio de algumas formas: 1) devido à gravidade do dano cometido, sendo portanto extenso e massivo, o qual não necessariamente afeta as vítimas de forma individual, mas sim, uma coletividade de pessoas; 2) os processos de vitimização geralmente são contínuos; 3) as vítimas nem sempre possuem consciência acerca dos danos socioambientais produzidos; 4) o quadro de vitimização ambiental integra o chamado processo tardio, ou seja, as vítimas somente compreendem a dimensão do dano sofrido após o cometimento dele; 5) as vítimas podem apresentar confusão psíquica acerca de quem/quais são os verdadeiros responsáveis pela produção do dano socioambiental.
No mais, em que pese tenham sido realizadas grandes considerações epistêmicas acerca das construções científicas do campo da vitimologia, sobretudo, ao longo dos últimos anos, foram fundamentais para a transformação criminológica, indo além do que se considerava como o perfil ideal da vítima – aquelas ligadas ao sistema de justiça criminal –, para também, outras categorias que, até então, não eram incluídas, como as vítimas desiguais causadas pelos processos de vitimização ambiental, mulheres, populações negras, animais não humanos e todas aquelas vítimas de opressões oriundas da estrutura de poder econômica e neoliberal.
Sendo assim, buscam-se, atualmente, maneiras mais efetivas de identificar os processos de vitimização ambiental, bem como seus autores e vítimas, de forma a (re)pensar e planejar estratégias que solidifiquem a radicalização da estrutura de poder que permite e legitima tais danos, rumando na construção teórica e prática voltada a divulgação e responsabilização destes, bem como a garantia de que as vozes das vítimas ambientais sejam ouvidas e divulgadas.
Referências bibliográficas
BUSTOS RAMÍREZ, Juan; LARRAURI, Elena. Victimología: presente y futuro. Temis. Bogotá, 1993.
CASTRO, Lola Aniyar de; CODINO, Rodrigo. Manual de criminologia sociopolítica. [s.l.]: Ediar, 2013.
KOSOVSKI, Ester. "História e escopo da vitimologia", In KOSOVSKI, Ester; PIEADADE JR., Heitor; ROITMAN, Riva (Orgs.). Estudos de vitimologia. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.
NATALI, Lorenzo; BUDÓ, Marília de Nardin. "A sensory and visual approach for comprehending environmental victimization by the asbestos industry in Casale Monferrato", European Journal of Criminology, v. 16, n. 6, p. 708-727, 2019.
SILVEIRA, Alexandre Marques. Dano social estatal-corporativo e a vitimização ocasionada pela exposição ao amianto na cidade de Osasco-SP: um estudo criminológico a partir da representação das vítimas, 2018.
Referências artísticas
A Menina do Napalm (Nick Ut Cong Huynh, 1972)
Fotografia
A imagem registra o ataque realizado em 8 de julho de 1972 pelos estadunidenses na região Sul do Vietnã através de uma substância altamente inflamável – napalm - produzida à base de gasolina gelificada. O fotógrafo visualizou um grupo de vítimas vietnamitas fugindo do ataque, e entre elas estava a menina Kim Phuc Phan Thi, de apenas 9 anos de idade a qual gritava "Nóng quá, nóng quá" (muito quente, muito quente). Atualmente a menina é a embaixadora da Boa Vontade da UNESCO. A bomba química se tornou símbolo da Guerra do Vietnã e assassinou mais de 2 milhões de pessoas.
Belo Monte, Anúncio de uma Guerra (André D'Elia, 2015)
Documentário
Registra os danos sociais e ambientais ocorridos nos arredores do rio Xingu, onde fica localizada a usina hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira. A comunidade indígena teve hábitos, cultura e ecossistema desestruturados devido a mega construção.
Sem título (Leo Malfaia, 2019)
Fotografia
Foi registrada durante o maior vazamento de óleo do Brasil, oportunidade em que o adolescente de apenas 13 anos de idade tentava se livrar do óleo preso ao corpo após ajudar na limpeza na praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife.
[Imagem removida por solicitação da PicRights Brasil]
Karine Agatha França
Lattes | ORCID
FRANÇA, Karine Agatha. Vitimização ambiental. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 2.ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2021. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/vitimizacao-ambiental/92. ISBN 978-65-87298-10-8.