Criminalização secundária

Criminalização secundária

Definição

Conjunto de práticas e procedimentos, por meio dos quais as agências estatais buscam identificar, julgar e punir as pessoas que, supostamente, tenham infringido normas penais estabelecidas previamente nos processos de criminalização primária.

Aspectos distintivos

Uma vez selecionadas as condutas reprováveis a ponto de serem classificadas como criminosas (Criminalização Primária), a intervenção do Estado diante da ocorrência de alguns desses comportamentos, para a aplicação do Direito Penal, é chamada de Criminalização Secundária. Enquanto nos processos de Criminalização Primária, o Estado define crimes e comina penas, na Criminalização Secundária o Estado busca a efetivação da ação punitiva de forma concreta.

Os principais órgãos responsáveis pelos processos de Criminalização Secundária, de acordo com Juarez Cirino dos Santos, são: a Polícia, a Justiça e a Prisão. A atuação e a interação entre esses órgãos acontecem de forma complementar, sendo a Polícia responsável pelas detenções e investigações; a Justiça pelas acusações, julgamentos e condenações; e a Prisão encarregada da função repressiva e punitiva.

Nilo Batista e Eugênio Raúl Zaffaroni, tomando como referência o Brasil, descrevem de forma sucinta as etapas presentes nos processos de Criminalização Secundária, que em muitos dos casos, inicia quando as agências policiais tomam conhecimento de que alguém supostamente praticou uma conduta criminalizada primariamente. As agências policiais então investigam, em alguns casos privam essa pessoa de liberdade, e a depender do resultado das investigações, submetem à apreciação da agência judicial. Essa última, por sua vez, analisa e legitima o que foi realizado pelas agências policiais e, se preenchidos os requisitos, admite um processo para discutir se o acusado realmente praticou aquela ação, nas circunstâncias que a tornam criminalizada. Caso a resposta seja afirmativa, a agência judicial determina a imposição de uma pena, que se for privativa de liberdade, será executada por uma agência penitenciária (ou prisional).

A depender das características de cada caso e do sistema de justiça criminal de cada país, podem existir variações em relação aos órgãos envolvidos, bem como em aspectos específicos na forma como a atuação de cada um deles acontece. No contexto brasileiro, integram as agências policiais, instituições responsáveis pelo policiamento ostensivo, e pelo policiamento investigativo, em âmbito Estadual e Federal. Integram a fase judicial o Ministério Público, as Defensorias Públicas, a Ordem dos Advogados e o próprio Judiciário, cada uma dessas instituições com papéis distintos. Por fim, atuam nas instituições prisionais, as Polícias Penais e os Órgãos de Administração Penitenciária.

Análise

Assim como a Criminalização Primária, a Criminalização Secundária também é exercida de forma seletiva. A prática de uma conduta formalmente definida como criminosa, não significa, por si só, a certeza da criminalização de quem a praticou. Inicialmente porque nem todos os delitos ocorridos chegam ao conhecimento dos órgãos estatais. Uma grande parcela deles compõe o que a criminologia chama de cifra oculta da criminalidade e, portanto, jamais se tornam alvo dos processos de criminalização secundária. Essa diferença entre o número real de delitos que são praticados, e o número de crimes que são registrados, não possui uma justificativa única, sendo influenciada por fatores que variam a depender do tipo de crime, do contexto em que ocorre, e das pessoas envolvidas.

Com relação aos delitos que efetivamente são notificados, diante do grande número de condutas criminalizadas primariamente no contexto brasileiro, torna-se impossível para que toda infração penal praticada seja alvo de intervenção estatal. A disparidade entre as hipóteses de aplicação do Direito Penal estabelecidas pelo legislativo, e a capacidade operativa das agências de criminalização secundária na prática, é imensurável. Mas, conforme constata Zaffaroni, caso o sistema penal tivesse a capacidade de exercer na prática o poder criminalizante programado na teoria, atingindo todos os delitos, grandes e pequenos, diariamente praticados, poderíamos chegar ao ponto de criminalizar, mais de uma vez, toda a população. Portanto, diante da impossibilidade de reprimir de forma igualitária todos os delitos e seus autores, o sistema penal age de forma seletiva, garantindo a manutenção de suas atividades.

Neste sentido, a criminalização secundária incide com maior frequência sobre aqueles fatos de menor complexidade, praticados de maneira grosseira, desesperada ou pouco planejada, e sobre aqueles praticados por pessoas com menor status social, influência, e possibilidade de defesa perante os aparelhos estatais de criminalização. Isso reflete, com maior intensidade, delitos praticados por integrantes de setores mais vulneráveis da sociedade, não por um manejo harmônico e conspiratório do sistema penal, mas porque as características desses casos são justamente o que viabiliza uma maior incidência criminalizante.

Outro ponto importante reside no fato de que uma ação formalmente definida como crime, quando praticada, pode ser percebida como criminosa ou não, a depender do contexto, das características do caso concreto, e de quem praticou a conduta ou quem foi vitimizado. A criminalização secundária depende de interpretações acerca de situações concretas, e a percepção em relação aos casos na prática, assim como em relação às pessoas neles envolvidas – por parte da sociedade e dos representantes das agências de criminalização secundária –, por vezes é carregada de subjetividade e influenciada por preconceitos, crenças, estereótipos, aspectos culturais e outros fatores, que contribuem para uma incidência seletiva da criminalização.

Outra característica dos processos de criminalização secundária que merece destaque, usualmente reforçada pela mídia, é a ampla incidência de estigmatização. Em muitos casos, mesmo após a absolvição, ou após o cumprimento integral da pena, pessoas submetidas a alguma das etapas dos processos de criminalização secundária, continuam a ser classificadas socialmente por adjetivos como “criminoso”, “marginal”, “bandido”, “presidiário” entre outros, o que pode atingir não apenas quem é criminalizado, mas também seus familiares e pessoas próximas. Isso dificulta, e por vezes impede, a reinserção social, reforçando situações de marginalização, vulnerabilidade e desigualdade, contribuindo para a incidência de novos conflitos sociais.

Diante das características acima citadas, a capacidade do Direito Penal em atingir seus objetivos declarados tem sido questionada. A aplicação do sistema penal é justificada pela ideia de promover a efetiva tutela de bens jurídicos relevantes, assim como a manutenção da segurança de forma igualitária, mas na prática, a criminalização, exercida de forma seletiva e estigmatizante, tem se mostrado um mecanismo de reprodução e manutenção de poder, da violência e das desigualdades sociais, tutelando, de forma majoritária e preferencial, direitos e interesses de integrantes de setores mais privilegiados da sociedade. Com isso, surgem ideias e propostas de mudança de perspectiva e abordagem em relação aos conflitos sociais e às condutas consideradas danosas, como por exemplo a Justiça Restaurativa ou o Abolicionismo Penal.

Referências bibliográficas

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2011.
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1991.
SANTOS, Juarez Cirino dos. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições de violência. 2. ed. São Paulo: Tiran Lo Blanch, 2022.
TAVARES, Juarez. Crime: crença e realidade. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros, 2021.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: primeiro volume: teoria geral do direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2019.

Referências artísticas

Flying Copper (Banksy, 2003)
Pintura
A pintura retrata a dualidade presente na figura da Polícia, uma das instituições responsáveis pelos processos de criminalização secundária.

Justiça (Maria Augusta Ramos, 2004)
Filme documental
O documentário aborda o funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro, retratando o dia a dia de juízes, promotores, defensores e acusados.

Relatos do Front - Fragmentos de uma Tragédia Brasileira (Renato Martins, 2018)
Filme documental
O documentário aborda reflexões sobre a segurança pública do Rio de Janeiro, expondo diferentes pontos de vista através de depoimentos de pessoas envolvidas, de alguma forma, com o tema.

Khalil Pacheco Ali Hachem
Lattes | ORCID


HACHEM, Khalil Pacheco Ali. Criminalização secundária. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); ABREU, Carlos A F de; RIBAS, Eduarda Rodrigues (orgs.). Dicionário Criminológico. 4. ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2023. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/criminalizacao-secundaria/135. ISBN 978-65-87298-15-3.