Definição
O termo cultura de estupro, cunhado pelas feministas estadunidenses na década de 1970, é um dos elementos pertinentes à sociedade patriarcal, machista e misógina, segundo o qual a culpa dos assédios e estupros sofridos pelas mulheres é de responsabilidade das próprias vítimas, objetificando-as e naturalizando a violência sexual perpetrada por homens.
Aspectos distintivos
Antes mesmo de discutir a cultura do estupro, é preciso analisar o estupro em si. Muitos autores renomados – Freud, Marx, Engels, por exemplo – quedaram silentes sobre o assunto, ainda que o termo tenha sido pertinente às suas obras, de modo que seus discípulos também nada falaram a esse respeito. Registros de pesquisas históricas indicam que os primeiros contatos sexuais entre homens e mulheres se deram de maneira forçada, assim que homens descobriram a possibilidade de utilização do falo para o ato, em especial porque bastava o pênis estar ereto, independentemente da receptividade feminina ou de a fêmea se encontrar em seu período fértil. Tragicamente, até os dias de hoje, o primeiro contato de muitas mulheres com o sexo se dá de maneira forçada. Para estes homens, o emprego forçado da relação sexual serve para afirmar sua superioridade; trata-se, portanto, não de sexo, mas, sim, de imposição de poder e controle sobre o corpo da vítima, tido como um objeto de dominação. O ato sexual é o meio pelo qual a violência ocorre, causando intimidação e medo na vítima.
A cultura de estupro tem como principal característica subjugar mulheres. Neste sentido, o fenômeno é estrutural e está presente em todas as relações sociais e em todos os ambientes – na família, na igreja, no trabalho, no espaço público –, motivo pelo qual é concebido como um instrumento de controle.
A principal razão de a cultura de estupro ser tão enraizada na sociedade é o fato de que a violência por ela estimulada não é tão descarada, embora seja penetrante. As atitudes que homenageiam a cultura de estupro são sutis e quase imperceptíveis – travestidas de piadas, brincadeiras, falsos moralismos e ideias distorcidas… –, mas os prejuízos daí advindos são reais e tangíveis. Tão reais e tão tangíveis que a mecânica do assédio sexual e do estupro, após ocorrida a violência, inicia com a própria vítima se questionando e se culpabilizando. Caso ela não se questione e nem se culpabilize, outras pessoas o farão – amigos(as), parceiros(as), familiares, médicos(as), policiais, juízes, promotores… E, por isso, é um fenômeno tão forte e tão presente: estruturalmente, as pessoas tendem a manejar a culpa de modo que recaia sobre a vítima, como se, de alguma forma, fosse possível evitar – e fosse responsabilidade da vítima evitar – o assédio e/ou o estupro sofrido. Criou-se, no imaginário popular, a ideia de que estupros são cometidos por estranhos que não se controlam e por isso agridem mulheres que estavam com a roupa errada, no lugar errado, na hora errada etc. Esta assimilação já foi derrubada por diversas pesquisas que apontaram que, em aproximadamente 70% dos casos de estupro, o estuprador é conhecido da vítima: amigo, namorado, pai, parente, padrasto. Portanto, o suposto “monstro descontrolado” nada mais é do que um patriarca convicto, sendo uma pessoa próxima da vítima, tendo o crime ocorrido no âmbito doméstico e familiar – e não em um local ermo, rechaçando a visão cinematográfica que existe no imaginário do cidadão comum sobre o estupro.
A cultura de estupro reforça cenários em que mulheres sofrem violências reiteradas, que parte exatamente dos profissionais e nos locais que deveriam, sobretudo, garantir a segurança, a saúde psicológica e física, além de justiça à vitimada. Este fenômeno recebe o nome de violência institucional, ou revitimização da vítima e, conforme observado, a vítima percorre diversos setores da sociedade relatando sua violência – família, amigos, médicos, psicólogos, advogados, policiais, promotores, juízes et al. –, causando-lhe sensação de abandono e deslegitimação da própria dor.
Também presente no âmbito do entretenimento adulto, a cultura de estupro é disseminada pela pornografia. Parte do movimento feminista é veementemente contra o pornô, uma vez que a representação feminina é, na quase totalidade das produções, degradada, objetificada e violentada – ao mesmo tempo em que sorri para as câmeras –, fazendo o consumidor crer que a depreciação e a tortura fazem parte do sexo.
Somente no Brasil, e apenas no ano de 2017, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2018) registrou 61.032 casos de estupro, o que equivale a aproximadamente 167 estupros por dia. Porém, é preciso levar em consideração que este tipo de crime é um dos mais subnotificados no mundo inteiro; logo, a tendência é que esta conta seja ainda maior. Dentre as vítimas, estima-se que aproximadamente 89% sejam mulheres.
Análise
Uma tentativa de solução para o problema da cultura de estupro veio com alterações no Código Penal brasileiro, ao tornar os crimes sexuais de ação penal pública incondicionada, bem como ao instituir as causas de aumento de pena do inciso IV, do art. 226, CP: estupro coletivo, mediante o concurso de dois ou mais agentes; e estupro corretivo, com o intuito de controlar o comportamento sexual ou social da vítima.
Todavia, é preciso compreender o fenômeno da cultura de estupro como uma construção social, aprendida e passada adiante pelos indivíduos. Desta forma, toda e qualquer transformação, no sentido de conscientizar os cidadãos, passa, quase que obrigatoriamente, por um esforço conjugado de toda a coletividade, devendo cada instituição assumir suas responsabilidades e seu papel transformador, a fim de se atingir o ideal de uma sociedade justa e igualitária.
Referências bibliográficas
DWORKIN, Andrea. Woman hating. New York: Plume, 1974.
MENEGHEL, Stela Nazareth et al. “Rotas críticas de mulheres em situação de violência: depoimentos de mulheres e operadores em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil”, Cad. Saúde Pública, v. 27, n. 4, 2011.
RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva; MIGUENS, Marcela Siqueira. “Pornografia e sexualidade: uma denúncia da condição feminina”, Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais, v. 4, n. 1, 2018, p. 148-168.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Crime nº 70070140264 (CNJ: 0224220-15.2016.8.21.7000), Sétima Câmara Criminal. Relatora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos. Data de Julgamento: 31/08/2016. [A vítima, menor de 14 anos, fora abusada e estuprada pelo genitor, tendo inclusive engravidado e conseguido permissão para realização do aborto (situação permitida pelo art. 128, II, do Código Penal). Em audiência, a vítima desmente seus relatos anteriores e, apesar de a retratação se tratar de uma mecânica comum em casos de abuso e estupro em que o genitor é a principal fonte de sustento da família, o Promotor de Justiça ataca e ameaça a vítima, imputando-lhe, inclusive, a prática do crime de aborto.]
SOMMACAL, Clariana Leal; TAGLIARI, Priscila de Azambuja. “A cultura de estupro: o arcabouço da desigualdade, da tolerância à violência, da objetificação da mulher e da culpabilização da vítima”, Revista da ESMESC, v. 24, n. 30, 2017, p. 245-268.
Referências artísticas
What Were You Wearing? (Jen Brockman e Mary A. Wyandt-Hiebert, 2013)
Exposição de arte
A exposição reúne peças de roupas que vítimas de estupro vestiam no momento do crime, buscando desmistificar a ideia de que a roupa é motivo determinante para a violência.
Back To Sleep (Chris Brown, 2015)
Música
A cantora Bethany Cosentino criticou duramente Chris Brown pela perpetuação da cultura de estupro presente na letra de sua música: “Just let me rock, fuck you back to sleep girl / Don’t say a word no, girl don’t you talk / Just hold on tight to me girl / Fuck you back to sleep girl, and rock you back”.
Luana Ramos Vieira
Lattes | ORCID
VIEIRA, Luana Ramos. Cultura do estupro. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/cultura-do-estupro/36. ISBN 978-85-92712-50-1.