Criminologia

Criminologia

Definição

Conjunto de discursos científicos interessados na violação ou no risco de violação de um regramento social ou de normas legais, nos indivíduos a ela relacionados, em suas causas e consequências, e também nos próprios processos de definição de seus objetos e nas relações de poder em que se encontram inseridos.

Análise

Tradicionalmente, ensina-se que os primeiros discursos criminológicos surgiram no interior da Escola Positiva italiana, no finalzinho do século XIX, com os escritos de Lombroso, Ferri e Garófalo. É possível, porém, recuar um pouco o marco inicial da criminologia para o início do século XIX, com a literatura sobre frenologia (Gall, na Alemanha); ou para a virada dos séculos XVIII-XIX, quando alienistas (como Rush, nos Estados Unidos; Pinel, na França; e Prichard, na Inglaterra) apresentaram seus estudos sobre a insanidade moral; ou até para décadas antes, quando alguns jusracionalistas ilustrados (como Beccaria, na Itália; Bentham, na Inglaterra; e Feuerbach, na Alemanha) passaram a defender em seus escritos limites à punição e a argumentar que a imposição do castigo fosse racionalizada e que sua aplicação fosse utilitária. Há ainda quem identifique um estágio embrionário da criminologia em tratados de demonologia, séculos antes; de fato, muitos célebres manuais do período da Inquisição católica analisaram as causas do mal, as formas em que este se apresentava e os métodos para combatê-lo.

Se a criminologia tem data de nascimento incerta, duas outras questões são incontroversas: (1) independentemente do marco inicial adotado, a criminologia nasceu na Europa, para depois ser transladada, traduzida, reproduzida ou reelaborada, em outros continentes; (2) mesmo que sejam admitidos diversos mananciais ao longo do tempo, foi somente com os discursos criminológicos positivistas que a criminologia ganhou um aspecto científico.

Influenciados por teorias das ciências naturais em voga no período, os discursos criminológicos positivistas tiveram como denominador comum o argumento de que a biologia determina o comportamento criminoso e, assim, apresentaram a figura do criminoso patológico como objeto de seus estudos principais. Outros fatores não foram ignorados por seus autores, mas a premissa básica era a de que algumas pessoas nascem criminosas por uma predisposição fisiológica anômala – muitas vezes, atávica.

Outros discursos, inspirados nas teorias sociais vigentes então, passaram a relacionar a criminalidade com a estrutura social. Enquanto, antes, o desvio e o crime eram entendidos como reações patológicas de alguns indivíduos em uma sociedade orgânica saudável, para os novos criminologistas, majoritariamente formados nas ciências sociais, crime e desvio passaram a ser vistos como reações normais de alguns indivíduos a condições – normais, para uns; anormais, para outros – de uma sociedade disfuncional. As transgressões seriam resultado de situações anômicas (Durkheim, Merton), do processo de urbanização e dos fatores ambientais da cidade grande (Escola de Chicago).

Enquanto distintas em suas explicações sobre a etiologia (as causas) do crime e do desvio, tanto os discursos criminológicos positivistas quanto os sociológicos compartilhavam a premissa de que o desviante/criminoso era o outro – fosse ele um indivíduo patológico, fosse ele um migrante ou pertencente a um grupo marginalizado. É possível dizer, portanto, que até esse momento, os discursos criminológicos estiveram atentos a delinquências menores que perturbavam a paz interna dos Estados, à mensuração mais eficiente desses problemas e ao refinamento dos instrumentos de policiamento, controle, punição e tratamento dos transgressores – sobretudo pobres e jovens.

Esse fundamento foi inicialmente contestado pelos discursos derivados da teoria do processo social. Sutherland, por exemplo, criticou as explicações tradicionais da criminalidade, indicando (1) que suas amostras eram tendenciosas por não incluírem vastas áreas do comportamento criminoso de pessoas que não estavam nas classes baixas; (2) que os aspectos nos quais os crimes das duas classes se diferenciavam eram os incidentais, em vez dos essenciais, da criminalidade. Com a ideia de que a criminalidade sistemática era aprendida e que ela era aprendida em associação com aqueles que já praticavam o comportamento criminoso (teoria da associação diferencial), Sutherland revolucionou a criminologia com o conceito da criminalidade de colarinho-branco.

Dois outros movimentos teóricos foram fundamentais para reformular os objetos e o próprio papel da criminologia. As teorias do etiquetamento propuseram que o delito possui uma natureza definitorial (o crime deixa de ser uma entidade ontológica pré-constituída, ou uma qualidade intrínseca da conduta, para se tornar uma qualidade atribuída por meio de complexos processos de interação social), que a criminalidade é produzida e confirmada pelas próprias instâncias do controle social e que a reação social ao desvio/crime o potencializa, consolidando o status de desviante/criminoso. Se as teorias do etiquetamento superaram o determinismo implícito nos discursos criminológicos anteriores ao apresentarem a dimensão da definição no problema do crime, as teorias do conflito de orientação marxista intensificaram essa crítica ao introduzirem a dimensão do poder. A criminologia crítica, como é mais conhecida, foi responsável por esclarecer que o sistema penal é profundamente enraizado no sistema socioeconômico no qual ele opera e, assim, apresentar um enfoque macrossociológico, de uma sociedade estratificada, que busca compreender a função histórica do sistema penal na conservação e na reprodução das relações sociais de desigualdade.

Desde então, o que se viu foi uma explosão de discursos criminológicos – cada qual com suas premissas, objetos e metodologias particulares – interessados no desvio e no crime, nos infratores e vítimas, suas causas e consequências, e na elaboração e aplicação – ou não – das leis penais: criminologia cultural, criminologia de condenados, criminologia cyber, criminologia da mobilidade, criminologia feminista, criminologia internacional, criminologia marginal, criminologia negra, criminologia queer, criminologia verde, criminologia visual, neurocriminologia, newsmaking criminology etc.

Aspectos distintivos

A análise anterior, que se limita à narrativa das correntes criminológicas mais tradicionais, revela a riqueza dos discursos criminológicos. O enquadramento conceitual parte de uma análise dos discursos criminológicos no que pode ser considerado um movimento expansivo-inclusivo.

Primeiro, o desenvolvimento das criminologias se caracteriza por um movimento de expansão geográfica, teórica, acadêmica e profissional. No plano geográfico, os primeiros discursos criminológicos emergiram na Europa. Pouco importa qual seja o marco inicial adotado (demonologia, classicismo, positivismo ou estruturalismo); todos esses discursos foram inspirados por tradições teóricas europeias, derivaram dessa experiência de mundo, foram lá apresentados e contestados, para então serem exportados às outras regiões do globo. No campo teórico, a ideia de um conjunto de discursos (ou: criminologias) oportuniza tanto que sejam admitidas infindáveis e necessárias adaptações e variações criminológicas, quanto que tenhamos em mente que encontraremos criminologias mesmo onde o termo não é aparente – como em outras ciências e práticas estabelecidas. Nos domínios acadêmico e profissional, a crescente proeminência das múltiplas violências como interesse social e pauta política intensificou os investimentos em segurança pública e daí derivaram: maior demanda por estudos e análises científicas, inclusão dos temas relacionados em concursos públicos, maior oferta da disciplina nas universidades e até mesmo a oferta da criminologia como curso de graduação.

Segundo, a pluralidade se manifesta na inclusão de cada vez mais objetos de interesse. Enquanto o nome da disciplina faz referência expressa ao estudo sistemático (-logia) do crime, os estudos criminológicos albergam, na prática, categorias dinâmicas de violações: a violação de uma norma penal (crime), a violação de um regramento social (desvio) e a prática de ato injusto contra a qual não há – ainda – qualquer regra social ou legal, local ou universal, sob a qual ela possa ser categorizada, mas que já desperta certa preocupação (nova ameaça). E mais: como a própria definição acima explica, além do interesse pelo comportamento "antissocial", os discursos criminológicos também têm como objetos de estudo: infratores e vítimas, a etiologia criminal, a zemiologia, o controle social, os processos de definição e as relações estruturais de poder. Essa amplitude dos objetos de interesse deu ensejo ao mencionado crescente catálogo de novas criminologias. Se, por um lado, isso possibilita abordagens mais específicas e análises mais profundas, por outro, devemos estar atentos à falsa novidade de algumas novas escolas, à faccionalização dos criminologistas e à consequente fragmentação do campo.

Essa dinâmica expansiva-inclusiva da criminologia implica, portanto, uma dupla noção de pluralidade: são múltiplas as criminologias e também são múltiplos seus objetos de estudo. Daqui, emergem dois pontos de reflexão:

Múltiplas criminologias, visíveis e invisíveis: Existe uma desigualdade geopolítica na concentração, influência e visibilidade dos discursos criminológicos. Alguns países têm uma posição privilegiada nessa geopolítica do saber criminológico para desenvolver teorias, discursos e métodos, estabelecendo uma hegemonia intelectual do norte/centro global. Como visto, isso foi um tanto inevitável porque os primeiros escritos criminológicos derivaram de experiências da sociedade europeia e foram estruturados a partir de tradições teóricas também europeias. Mas, se isso pode ser historicamente justificado, pode ser hoje incontestavelmente aceito? Desse ponto derivam duas questões relacionadas: Quem são os criminologistas, cujos discursos são lidos e admitidos? E quem são aqueles excluídos das discussões científicas e cujas perspectivas não são em geral abordadas? Dentre as muitas criminologias, existem também aquelas silentes ou silenciadas.

• Múltiplos objetos, objetivos indefinidos: Além de determinar seu objeto de interesse, o discurso criminológico deve esclarecer seu objetivo. Para que serve a criminologia (ou cada uma das muitas criminologias)? Para explicar e justificar as múltiplas violências analisadas? Ou, para entendê-las e, assim, contestá-las? E não menos importante: Como os criminologistas cumprem (e cumprirão) esses objetivos?

Referências bibliográficas

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan: 2011.
CARLEN, Pat; FRANÇA, Leandro Ayres (orgs.). Criminologias alternativas. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017.
FRANÇA, Leandro Ayres. "How International Should International Criminology Be?", International Criminology, v. 1, i. 1, p. 46-57, 2021.
LIEBLING, Alison; MARUNA, Shadd; MCARA, Lesley (eds.). The Oxford Handbook of Criminology. 6. ed. Oxford: Oxford University Press, 2017.
SUTHERLAND, Edwin H. "White-Collar Criminality", American Sociological Review, 5(1), Feb. 1940, p. 1-12.

Referências artísticas

L’Assassin Menacé (René Magritte, 1926-7)
Pintura
No centro deste quadro, o epônimo assassino está ao lado de sua vítima. Ela está deitada nua sobre o sofá. Bem vestido, ele aparenta estar prestes a deixar o local (o casaco e o chapéu estão numa cadeira, próximos à sua mala), mas é interrompido por uma gravação (o assassino parece atrasar sua saída, ouvindo um gramofone). Ao fundo, três homens observam a cena da varanda. No primeiro plano, dois homens – trajados como detetives e estranhamente armados – aguardam para capturá-lo na entrada do cômodo: o homem à esquerda com um porrete, o outro com uma rede. Essa disposição justifica o título da obra: O Assassino Ameaçado – e é curioso que a escolha do título se concentre exclusivamente no criminoso, e não na vítima, nos supostos policiais ou nas três figuras ao fundo. A pintura surrealista, dentre inúmeras interpretações possíveis, sugere um espelhamento entre crime e punição, e mais especificamente que policiais são misteriosamente dependentes da existência do crime. A obra está atualmente exposta no MoMA (Nova York).

Johnny Cash at Folsom Prison (Johnny Cash, 1968)
Álbum de músicas
Três décadas antes do grupo Racionais MC’s lançar o célebre álbum Sobrevivendo no Inferno, Johnny Cash fez dois shows na Folsom State Prison (Califórnia); a gravação ao vivo resultou no álbum Johnny Cash at Folsom Prison. Com afinidade sensível e um bocado de troça, as canções retratam a miséria de trabalhadores na época (Dark as the Dungeon), a experiência do crime e da persecução penal (Cocaine Blues), julgamentos injustos (The Long Black Veil), pena de morte (25 Minutes To Go) etc. Merecem destaque as faixas que traduzem a opressão cotidiana do aprisionamento (Send a Picture of Mother; The Wall; I Got Stripes; Green, Green Grass Of Home). Sobre a reedição do álbum, em 1998, Christian Hoard (Rolling Stone) escreveu que ela "representava um excelente registro histórico, acentuando a sintonia de Cash com os apenados".

CrimComics (Krista S. Gehring e Michael R. Batista, 2016-2022)
Quadrinhos
A série CrimComics, publicada pela Oxford University Press, introduz as teorias criminológicas tradicionais por meio dos quadrinhos. Cada número da série apresenta o desenvolvimento de um determinado discurso, incluindo seu contexto sociopolítico, e suas aplicações no mundo: Origens da Criminologia (vol. 1), Biologia e Criminalidade (vol. 2), Criminologia Clássica e Neoclássica (vol. 3), Teoria da Desorganização Social (vol. 4), Teorias da Anomia e da Tensão (vol. 5), Teorias Subculturais (vol. 6), Teorias do Controle Social (vol. 7), Teorias da Aprendizagem Social (vol. 8), Teorias Psicológicas (vol. 9), Teorias Desenvolvimentais e do Curso da Vida (vol. 10), Teoria do Etiquetamento (vol. 11).

Leandro Ayres França
Lattes | ORCID


FRANÇA, Leandro Ayres. Criminologia. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 3.ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2022. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/criminologia/102. ISBN 978-65-87298-14-6.